Um susto na fronteira


     Eu saíra de Lyon na França com destino a Milão em pleno dia 02 de janeiro (2005), num frio intenso, pelas quatro horas da tarde. O trem francês da TGV, rápido e brilhoso, chegou até a fronteira da Suíça e descemos com malas e tudo o mais. Outra locomotiva, de bandeira italiana, veio nos apanhar um minuto depois, subimos e rumamos pra Itália, atravessando a Suíça. Com visível ar de felicidade me acomodei, afinal, era a primeira vez que pisaria na terra dos meus bisavós.      
     Pouco a pouco, o manto escuro da noite foi caindo, deixando antever umas faixas claras de neve nos contornos das montanhas imponentes. Umas vilas despontavam aqui e ali. Logo, o fiscal italiano (com belo traje) veio verificar meu passaporte, demorou-se e sustentou o olhar, talvez por hábito do ofício, e eu lhe sorri.
     Duas estações adiante, entrou na cabine um rapaz de porte atlético e sentou-se a minha frente. Eu não queria interromper minha prece em silêncio, e depois, preferi continuar lendo um livro sobre destinos de viajantes. Peguei um caderninho e passei a escrever os acontecimentos da viagem. Minutos depois, ele se ergueu e saiu deixando seus pertences ali. Aquilo me causou estranheza e, ao mesmo tempo, pensei: devo parecer confiável. Ele demorou-se uns dez minutos... Então, trocamos algumas palavras, soube que era senegalês e estava vindo de Paris. Aí chegamos num outro posto de fronteira, ainda na Suíça e o trem parou.
     Ergui-me para ir ao toalete, e fui para os fundos do vagão, essa me pareceu a hora adequada. Ao atravessar o vão entre as duas locomotivas, da plataforma ao lado direito ouvi um grito irado:
     - Fr?rr?rrb?zy??? (não entendi nada!) – O fiscal suíço de face colérica me apontava o dedo fazendo gestos furiosos balançando os braços pra eu ir até ele... Fui, sem piscar. Ao lado dele, o fiscal italiano disse umas palavras em voz baixa, o suíço olhou para ele e pra mim, e acabou por me enviar de volta pra cabine. Este italiano era o mesmo que já tinha visto meu passaporte assim que entrei no trem.
     Ao retornar pro meu assento relatei o ocorrido pro distinto senhor a minha frente, no meu italiano atrapalhado, pois antes de morar na Itália meu dialeto (bergamasco) falava mais alto.
     - Que arriscado seu gesto! – disse-me Françoá, em italiano. – Muitos dos trens aqui na Europa saem com um grande número de vagões, e algumas locomotivas vão se desprendendo em determinadas estações. (aí me apavorei mesmo!) Seguem caminhos diferentes em certas bifurcações. (Nossa! Foi um risco muito grande!)
     Subitamente, a passos largos, entraram na cabine os dois fiscais.
     - Qui! (aqui) – exclamou o suíço atabalhoado, como se eu fosse me esconder em algum canto. Imagine! Vindo direto pra mim, disse uma palavra qualquer e logo meteu-se a remexer as minhas coisas, sacudiu o casacão, mandou-me levantar, tirou tudinho da bolsa: echarpes, luvas, touca, cremes, agenda, lencinhos, tim-tim-por-tim-tim...; pegou a nécessaire tirou um colar, depois outro, depois as pulseiras e foi tirando tudo; abriu outra nécessaire e tirou um sininho de Paris... – São souvenirs! - exclamei – Ããh... ele fez que não entendeu e continuou rigoroso – Souvenirs! – ele foi achando as castanholas de Madri, um chaveiro de Toledo, e outras miudezas, e nada... ele nervoso, não achou nada! Parecia que não se conformava que eu não portasse nenhuma arma letal! Suas maneiras eram esquisitas ou seriam cacoetes, sei lá. O outro fiscal, serenamente profissional, conferiu os pertences do cavalheiro à frente.
     - São procedimentos normais! – disse Françoá a fim de me tranquilizar, e pra que meus olhos arregalados não me traíssem.
     - Jesus é nosso Salvador! – Françoá complementou. Então, o suíço se acalmou, ambos entenderam que fora por mero acaso eu sair do vagão naquele momento na fronteira, e nos deixaram em paz.
     Depois que os funcionários da ferrovia saíram, ficou um silêncio ruidoso. Olhei lá fora a paisagem escura, umas luzes vibrantes salpicavam o caminho, e tudo passava muito veloz. Veio-me à lembrança o atleta Abebe Bikila, um etíope vencedor da maratona de Roma de 1960,... correndo descalço!... quarenta e dois kilômetros! Bikila foi o primeiro africano a receber uma medalha de ouro em Olimpíadas, e também venceu a maratona de Tokyo em 1964. Tornou-se símbolo de uma África que se libertava, por fim, do colonialismo. Em Roma há uma placa em sua homenagem. Minha admiração ao grande vencedor, um dos maiores maratonistas que o mundo conheceu.
     O trem continuou seu curso atravessando campos e colinas, e as cidadezinhas adormecidas do norte da Itália.
     A volta do fiscal italiano nos surpreendeu – Aqui estão! – disse ele a uma brasileira que foi entrando... - oi! – abriu um largo sorriso.
     - Estava procurando alguém da minha terra... (me disse). Então, sentou-se perto da porta. Joana era carioca, fazia seis anos que se mudara pra Turim, trabalhava de cuidadora na casa de uma idosa; tinha filhos adultos (foi me contanto) e por ter ficado sem emprego, depois dos 40 anos as coisas se tornaram bem difíceis,... aí ela tomou coragem e foi arranjar-se na Itália. Estava animada retornando de umas festivas férias com a família no Rio.
     - Vejam as fotos de minha família – tirou da bolsa um pequeno álbum e nos mostrou. Nas imagens: muitos sorrisos, gente bronzeada, o brilho do sol, o mar do nosso vibrante litoral e retratos dos filhos pra sempre se recordar.
O viajante senegalês também contou-nos de sua família e algumas coisas da sua vida. Mostrou o passaporte: Dara, este o sobrenome. Tinha se fixado numa terra diferente: Milão, e agora esse era seu mundo. Rapidamente, chegamos a Turim.      
     Nem notamos as paradas nas estações. Joana deu-me seu endereço e nos despedimos amavelmente.
     Eu estava apreensiva. Que escuridão lá fora! A angústia e a emoção de chegar a Milão me faziam tremer... Françoá falava de amenidades, mas meus pensamentos se mantinham distantes. De repente, já eram quase onze horas e lá estava: a Estação Central de Milão. Chegamos!
     Seguimos pela plataforma dos trens urbanos, e muito gentil, meu amigo foi levando minha mala. Despedimo-nos ali: Françoá fixou meu olhar... - Obrigada pela companhia! - eu lhe disse em português. Dei-lhe um terno sorriso, então ele deu-me um beijo no rosto, me disse tchau e se foi rumo ao seu destino. Peguei uma condução até o Duomo, no coração de Milão. Logo em seguida, subi as escadas, e tiritando de frio e felicidade, avistei a majestosa Catedral, toda iluminada, linda!... Impossível não se emocionar!



____________________________________________  Izabella Pavesi

Conto selecionado para a Antologia "RAÍZES" publicação da Literarte,  lançamento neste 2012.