GRAÇA

Um fio de luz ultrapassava a telha quebrada de sua casa alcançando o seu rosto enrugado. Um copo vazio em cima do criado mudo relembrava a festança de bebidas e palavrões. Um feliz aniversário de varias emoções e poucos presentes, mas para um homem sem esposa e filhos, ser lembrado tem o mesmo valor.

Enrolado no seu cobertor especial, e único, ele se levanta da cama em direção ao espelho (um caco de espelho), como se fosse reparar algum defeito em seu semblante. Defeito havia, mas poucos: olheiras profundas, cabelo despenteado, sorriso incompleto... –É Roberto! A vida foi dura demais. O tempo foi rude até. Deixou sua cabeça confusa de pensamentos.

A mulher que convivia no mesmo teto, que alimentava os seus projetos, os seus sonhos, abandonou-lhe em plena alvorada levando consigo os três filhos. A causa não foi traição e nem desleixo da sua parte, pois se existia uma coisa que ele mais apegava ao coração era o amor de sua família, porem o medo de não enfrentar o mal do alcoolismo, o qual o escravizou terrivelmente em curto prazo, foi o estopim da separação.

Em pouco tempo a voz suave de um locutor passou a ser de um cão sedento. O corpo de um atleta olímpico passou a ser esquelético quase como a de um judeu nos campos de concentração nazista.

Herança hereditária, não se sabe, mas seu pai morreu num barzinho (hoje fechado), agonizando com dores abdominais. Laudo da pericia medica: alta taxa de álcool no sangue e corte interno no fígado esquerdo. Diferente de seu pai, Roberto era um amigo excepcional, um vizinho exemplar... Era! Hoje recorta as fotos, extinguindo exatamente suas razões e perfeições. Mas guardando lembranças felizes.

Alguém bate em sua porta. Ele demora a abrir. Novamente outra batida. Ele se irrita e murmura dentro de si. –Será que a morte veio me buscar logo cedo! – Cedo no sentido de horas e não pela debilidade, porquanto sabia que a qualquer momento chegaria o seu fim.

Ao abrir, uma surpresa, o carteiro com um envelope na mão pronuncia o seu nome e o nome do remetente: - Marta Castro de... ! As palavras do carteiro são interrompidas pela ansiedade de Roberto. Faz tempo que ele não recebe uma carta tão especial. Uma carta de uma pessoa que nunca mais vira. Seus olhos enchem de lagrimas ao notar que além do conteúdo (uma folha simples de um caderno infantil) há também uma fotografia. Ele fecha os olhos e ergue a cabeça aos céus como se fizesse uma petição ao Divino, mas indiscutivelmente Roberto estava agradecendo o ato redentor da graça.

Sabe, graça é isso: é um favor imerecido. É algo que, notoriamente, não aspirava confiança ao favorecido. É como trocar de senha com o segundo da fila sabendo que o seu bilhete é o de numero 100. Inacreditável, mas com a graça, isso acontece.

A imagem na foto é familiar. É intrínseca. É única. São copias de sua vida. Seus filhos aparecem sorridentes, como se dissessem: - Papai, estamos bem! Combinando harmoniosamente com a correspondência que dizia:- Roberto, apesar das faltas que o nosso relacionamento geraram, e que produziram um fardo pesadíssimo em nossa relação, saiba que você foi o primeiro homem que amei e que me entreguei. Sei da dor e do sofrimento que estais passando sem a nossa companhia, porem nunca esqueça que os nossos filhos te amam profundamente e que brevemente nós iremos te visitar... Te amamos. PS: Estou orando por você.

Para ele, a fonte da virtude e da felicidade dava um forte abraço em seu frágil ser. O melhor presente de todos os poucos presentes que recebeu. O desenrolar dos assuntos escritos por sua ex-mulher o fortificavam e alimentavam seu ego de não querer desistir da vida. De não querer desistir de si mesmo. De não querer desistir da família.

Dentro dele, uma voz dizia: - vença os seus medos! Naquele momento, algo autoritário o Poe de pé como um guindaste erguendo as pedras de tropeço na via da mudança. Novas reações surgiam, não automaticamente, mas graciosamente, dando impulso a um término. O término do medo. Ele pega o telefone e disca vários números: jardineiro, marceneiro, cabeleireiro a domicilio, casa de tratamento para dependentes... Enfim, tudo o que for a prol de uma transformação.

Nesses momentos a determinação é muito importante e determinar algo que se deseja é pôr em pratica o valor da vitoria. Roberto estava determinado, ou seja, decidido em reconquistar o que o alcoolismo lhe furtou e a distancia lhe tirou: seu apreço.

Aos poucos a casa se transformava, a aparência se modificava e a vida... Bem, a vida, na minha concepção, deve ser restaurada parede por parede (refiro-me a paredes emocionais, as quais são construídas dentro da psique), selando ornamentalmente toda estrutura complexa do eu. Meses se passam e depois de tudo pronto (casa arrumada, telha quebrada substituída e a aparência física um tanto juvenil) ele senta em sua velha poltrona e aguarda o cumprimento daquela correspondência.

Passa-se uma hora, ele pisca os olhos. Passam-se três horas, ele toscaneja. Passam-se sete horas e ele é vencido pelo sono.

Sonhos e sono se misturam como forma de distração a sua ansiedade. Em seu sonho uma grande parede é derribada libertando a sua visão a um horizonte de felicidade, com cenário onde crianças brincam e casais se reconciliam.

Sem que Roberto perceba a porta se abri lentamente. Passos inaudível em caminho a poltrona misturam-se a sorrisos acanhados. Uma suave e carinhosa saudação em suas mãos com um simples deslizar dos dedos o desperta. –Papai! –Ele mal acredita, mas é verdade. Sua ex-mulher também não acredita, mas Roberto está mudado. Quem o transformou? Quem o modificou? De onde surgiu a coragem para enfrentar a covardia? Todas essas perguntas se englobam em uma só resposta: Graça.

É bíblico: “pela graça sois salvos mediante a fé...” A morte estava a caminho de sua residência, porem a graça o observava da janela, bastava tão somente ele a convidar. E ele fez isso quando abriu a porta para o carteiro. Quando pegou o telefone e ligou para a casa de tratamento para dependentes. Quando ouviu a voz da consciência lhe dizendo: vença seus medos! É notório que para uma mudança devemos aceitar algumas perdas e no caso de Roberto a família foi uma delas. Mas nada é tão gratificante e tão satisfatório do que recomeçar a vida.

Essa historia tem um pouco de verdade e ficção, mas vale lembrar que a graça trabalha no âmbito do acreditar. A qualquer momento ela poderá aparecer em sua janela, e antes que você a convide ouça primeiro a seguinte frase da consciência. Vença os seus medos!

FIM.

Oseias Julio
Enviado por Oseias Julio em 16/06/2012
Código do texto: T3727750
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