A MINHA CRÔNICA - O PÃO -
A MINHA CRÔNICA – O PÃO -.
Seria cômico se não fosse à realidade triste do fato. A cantora Elis Regina cantava assim: Caia a tarde como um vagabundo.. . Pois é caia a tarde, um pouco fria e um pouco quente, típica de Curitiba.
As avenidas naquela hora não apresentavam movimento além do comum. Era a hora de voltar do trabalho para casa. Dos braços da amante para a titular. Ou da titular para os braços da amante. Ou era à hora de alguns iniciarem a sua jornada de trabalho. Enquanto alguns se dirigem para as suas casas afim de descansar, outros iniciam uma nova jornada. Médicas e médicos, enfermeiros e enfermeiras,bombeiros, assim uma enormidade de profissões e atividades.
Mas o fato que seria cômico se não fosse à realidade do fato, deve-se ao simples fato de parar para comprar pães. Pensei como seria gostoso comer um pão quentinho. Mesmo dirigindo, como seria gostoso. Não me importaria com as casquinhas e farelos. Um pão quente é muito bom.
Era para acontecer. Um saco de papel cheio de pães quentes, uns amarelinhos, outros douradinhos, outros branquelos e alguns moreninhos. Era uma verdadeira ONU de pães. O cheiro gostoso, o crocrante das casquinhas completava um ritual que desde os primórdios se repete: comer pão.
Quando criança minha mãe fazia pão. Ou melhor, pães. Um dia a nossa colaboradora saiu da cozinha levando na forma uns seis pães. O forno ficava fora de casa, era um forno de barro. Chovia e nossa Maria escorregou. Foi um verdadeiro espetáculo de equilibrismo e malabarismo que culminou com a fala da minha mãe: Maria, se você for cair, deita. Se a Maria caísse com a forma e os pães, todos ficariam sem os ditos pães. Mas se ela deitasse ao cair, quem sabe...
Pois é falávamos de pão. Nós morávamos no interior. Não tínhamos vaca para tirar leite e fazer manteiga. Mas tínhamos porcos para fazer banha. E assim o nosso pão de cada dia era quentinho, cheiroso e gostoso. Explico. Quentinho, porque a gente passava banha de porco na fatia de pão e a colocava sobre a chapa quente do fogão. Então ele ficava cheiroso. Depois um pouquinho de sal e pronto. Gostoso ele ficava.
A tarde caia, como que cansada pelo dia estafante e cansativo.
E eu com um saco de pães quentinhos, no banco ao lado.
Pessoas, ônibus e carros todos davam a entender que se dirigiam para as suas casas, pois já era chegada a hora do descanso. Carros bonitos, outros nem tanto. Pessoas com olhares cansados e meio sem brilho. Quem sabe pensando em chegar a suas casas e tomar uma refeição, onde o pão se fizesse presente.
Carros. Uns velozes, outros nem tanto.
Mas de repente o semáforo acende uma luz vermelha. E todos os carros param.
Um em especial vem no contra-fluxo. Mas não na pista de rolamento dos veículos. Locomovia-se sobre a calçada. Na direção uma mulher com seus 30 anos, aparentando 60 e acompanhando o carro à pé três crianças.
Explico. Era um carro de uma catadora de papéis. Melhor ainda de lixo que não é lixo. Dali tirava o pão de cada dia. Três crianças louras, o menino que aparentava ser o mais velho ajudava a mãe, empurrando o carro abarrotado de material da coleta do dia. A duas meninas um pouco atrás aproveitavam o momento, dos carros parados a espera do semáforo acender a luz verde, para pedir um “dinheirinho” para comprar pão.
E então a mais nova se aproxima e me diz: Tio dá um “dinheirinho para comprar pão”, estou com fome.
Ao meu lado um saco com pães quentinhos, moreninhos, loirinhos e branquelos.
Ao meu lado, três crianças. Lindas na sua sujidade corporal, mas lindas, lindíssimas nas suas almas e nas suas inocências.
Um pão. Dois pães. Três pães. Tio dá mais um pra nossa mãe. O coração falou mais alto? Ou a piedade? Ou tocou no fundo as palavras “Daí de comer a quem tem fome?”.
De pronto dei o saco com os pães. Um gesto simples, que não necessariamente seria preciso aqui descrever. Mas o que chamou a atenção foi o brilho dos olhos e a surpresa da menina mais nova. Como se naquele momento, quando ela pedia um “dinheirinho” para comprar pão, o pão apareceu. Materializado. Forrando aquele “estomaguinho” que por certo estaria vazio a horas.
O semáforo acendeu a luz verde e os carros começaram a se movimentar.
O semáforo da vida, daquela mãe e seus três filhos acendeu uma luz, não sei da qual cor, mas por certo seria a cor da fome. Parados ali, sentados no chão quente da calçada, com o carro estacionado, lotado da coleta diária. Comiam o seu pão de cada dia.
Chegando em casa a mulher da minha vida e a minha filha vida da minha vida, me perguntaram : Não trouxe pão?
E lhes respondi. Sim os trouxe os pães da solidariedade que os reparti antes de chegar em casa. E lhes contei o fato.
Um dia sem pão. Não representa nada. Havia um pé de alface e uns tomates.
Para aquela mulher e as três crianças, havia pães. Moreninhos, loirinhos e branquelos...
Romão Miranda Vidal.