No trânsito
O que sentem as pessoas enquanto dirigem? Que aflições lhe acompanham?Eu sempre quero saber.
Hoje um cidadão me ultrapassou pela direita, esbravejou enquanto ultrapassava – e olha que não ando devagar. Com o senho franzido, ele resmungava quando parei ao seu lado no sinal. Gesticulava como se enfurecido estivesse. E estava.
O filho dele deve ter batido o único carro da família e hoje é sexta, dia de planejar o final de semana. Já que ele estava no carro da empresa. E se for a sogra que resolveu vir morar na casa dele? Coitado. Ah, pode ser isso. É deve ser. E ainda vai trazer o cunhado, aquele de 40 anos que nunca trabalhou e fuma como morcego. E se for a conta do banco que estourou e o gerente está lhe telefonando a cada quinze minutos?
Mas pode ter entrado água na sua casa, recém pintada, e molhado todos os móveis, colchões, estofados e até o berço do netinho que acabara de nascer e que mora com ele. Mas também pode o irmão lhe ter surrupiado a herança do pai que ele estava esperando para continuar a reforma da casa. Era a salvação, pela qual ele sairia do vermelho no banco. Mas o safado do irmão pegou tudo, e para ele nem o acerto de contas do funeral do velho.
E se a mulher dele, aquela morena de causar suspiros, lhe avisou que vai passar o final de semana na praia com os amigos? O carro dos magros está cheio de latinhas de cerveja, o dele, o filho quer para ir na formatura, então ele fica cuidando da casa. É, pode ser isso. Dá muita raiva.Todos saem e ele fica cuidado de tudo, e pagando tudo.
Ela vai com os amigos, põe aquele biquíni feito com a pele de uma rã minúscula, toma cervejinha gelada, e o coitado na cidade cuidando dos cachorros e da casa.
E se for tudo isso junto? Coitado.
Sobra ele, no trânsito brigando com todo mundo, cheio de raiva.
Não, amigo, não pode. Vai resolver com sua morena o final de semana na praia, vai levar o moleque na formatura, manda a sogra pro asilo com o cunhado junto. Larga esta vagaba. Muda de cidade, sei lá. Mas não briga comigo no trânsito. A tua pressa é igual a minha. O teu lugar é igual ao meu. O sinal fecha às vezes pra ti e às vezes pra mim. E a raiva? Bom, a raiva, ela e só tua.