Morro, mas não conto
Existem certas questões que, por nada, nós comentamos. Coisas que certamente colocariam em xeque nossa imagem diante da opinião alheia. Segredos de estado que ninguém cogita, mas não cessam de perturbar nossa lembrança.
Na maioria das vezes se trata de algum erro. Algo que foi cometido em um passado remoto. A Idade Média de sua existência. Ou, também, pode ser algo que você não fez. Uma expectativa frustrada. O gol que você perdeu, o perdão que você não pediu, o eu te amo que você não disse. Isso são exemplos do que acontece geralmente.
O que eu guardo desde a infância e poucos sabem é algo constrangedor. Inadmissível para uma criança de cinco anos imagine para um adulto. O motivo de algumas mentiras. A razão de alguns traumas.
Eu não sei andar de bicicleta.
Juro que é verdade. Não consigo me equilibrar em duas rodas. Nunca dei mais do que duas pedaladas sem ralar o joelho ou o cotovelo com a queda lateral.
Tentei das mais diversas formas. Não tem jeito. Uma vez coloquei na cabeça que precisava porque precisava aprender a andar de bicicleta. Meu sobrinho mais velho - que é apenas cinco anos mais novo do que eu - já tinha aprendido. Que vergonha ser superado por alguém que você pegou no colo. Na rua da casa dos meus tios o desafio estava feito. Era uma rua sem saída. Uma baita lomba que terminava em uma sanga. Ou eu aprendia, ou eu caía no esgoto. Ou eu me sagrava herói, ou me juntava ao estrume.
Subi a íngreme ladeira com o camelo ao meu lado. Parei e observei o horizonte. Transmiti aquele ar presunçoso de Kick Buttowski para disfarçar a tremedeira que o pânico estava causando. Parecia uma vara verde, admito. Montei, suspirei e parti. Foram alguns metros de perfeição. O suficiente para eu atingir uma razoável velocidade. O guidon tremeu, eu me apavorei e em seguida estava virando cambalhotas rua a baixo.
Doeu um pouco. Bastante, para dizer a verdade. Levantei-me soberbamente. Recolhi a bicicleta. Encarei os vizinhos. Desdenhei as feridas e marchei para casa. Enfrentei a preocupação e o deboche dos familiares. Dez anos e não sabe andar de bicicleta, que vergonha meu Deus, eles diziam.
Prometi para mim mesmo desde aquele dia: bicicleta nunca mais.
Quem disse que eu preciso saber andar de bicicleta? Os guris que eram os melhores na minha infância, hoje nem possuem uma magrela. Que diferença isso faz? Nenhuma.
Saber ou não andar de bicicleta é algo fútil. Assim como tantas outras coisas na nossa vida. Ainda assim ocupa um espaço significativo na educação infantil e no intelecto social. Isso denuncia o quanto nossa concepção é baseada em padrões efêmeros.
Somos amantes da vaidade. Apaixonados pelo passageiro. Adúlteros da futilidade.
Privilegiamos ações externas. Menosprezamos frutos internos. Obstinamo-nos em fazer. Ridicularizamos o ser. Valorizamos o ter. Sentenciamos o dar.
Somos movidos pelo consumismo. Entramos em lojas, gastamos com adereços para o corpo - massagens do ego - e subdividimos o homem pela sua aparência. Pessoas com emoções pobres vestem roupas caras e insultam com o olhar os que estão ao redor.
Amamos o fugaz. Estabelecemos nossos conceitos de vida com base nisso: Viu aquele carro? Tem banco de couro e tudo. Viu aquele sapato? O mais novo da coleção. Olhou a cotação da bolsa de valores? Será que vou para o Costão do Santinho em Santa Catarina? Chegaste a ver a aquela última coleção de tal marca? O quê? Você não sabe andar de bicicleta?
Pais vaidosos criando filhos egocêntricos geram uma sociedade fútil. A sociedade é composta por relacionamentos. Os relacionamentos são a essência da vida. Ou seja, a vida se tornou fútil.
Me abri para mudanças. Dos males o menor. Prefiro aprender a andar de bicicleta.