DDD - Diário de Derrotas [33]

Celular desperta. Sete e dez da manhã e tudo o que eu sei é que essa noite de sono foi uma merda. Como se não bastassem as humilhações cotidianas à luz do dia. Acordei inúmeras vezes, meio perdido, meio sei lá. Deve ser por causa da minha garganta. Que está doendo. Que dá a impressão de ter uma bola de arame farpado nela. Você vai dormir na pretensão de mais ou menos esquecer um dia ruim e já acorda noutro que promete ser pior ainda. Tá um frio do inferno. Certeza que a garganta vai piorar depois do banho. Boto uma soneca de dez minutos e pego no sono. Boto outra soneca e fico olhando o teto. Pondero se devo ir ao hospital pela manhã ou esperar até o meio do dia. Só queria ficar aqui na minha cama encolhido. O celular desperta de novo e eu levanto. Não lembro qual pé pus primeiro no chão, mas a primeira palavra que saiu da minha boca foi: merda.

07h50m

Já era pra eu estar saindo de casa, como sempre, mas estou aqui trabalhando no Neston com leite e açúcar. É a única coisa que consigo comer pela manhã sem ficar com azia e fome e prisão de ventre. Às vezes, no último caso. Consigo engolir - mas não sem fechar os olhos e sentir o tijolinho baiano raspando na minha glote. Vou indo nessa, sem pressa, com as gatas ora me olhando, ora dando pulos fracassados até o meu colo e ficando penduradas nas minhas coxas.

08h05m

Os chuveiros daqui de casa sempre resolvem pifar ou fazer corpo mole quando o frio chega. A minha sorte é ter uma certa tolerância ao frio, em compensação à avessia total com relação ao calor. Então eu vou tirando a roupa e vendo os mamilos ficarem diminutos. Inclusive o pinto, que vira um terceiro mamilo. Aí eu entro debaixo d'água e é aquela maravilha de bater os dentes e gemer a cada ventinho que passa por alguma fresta invisível da janela ou do box.

08h25m

Estou oficialmente atrasado e com preguiça. Enquanto fecho o cadeado do portão - que imediatamente suja meus dedos de óleo diesel ou graxa -- e eu tenho que passar na parte de listra branca do muro roxo do meu tio, como se fosse uma vingança -, dou uma olhada furtiva pro caminho que tenho que seguir e, no meio da neblina, vejo uma efígie curvilínea, claramente trajando uma calça legging. Aperto o passo.

08h35m

Consigo lugar sentado na lotação e vou numa boa, pensando na morte da bezerra.

08h55m

Consigo um lugar agradável no trem e vou, com alegria no coração, pensando no desgosto que é fazer o mesmo caminho diariamente, nos mesmos horários, num sem fim de dias que ainda estão por vir.

09h20m

Consigo lugar sentado no metrô da Linha Amarela. São só duas estações. Encosto a cabeça e durmo, sentindo minha garganta fechada e esquisita. Acordo assustado e desço.

09h35m

Consigo um lugar de pé no metrô da Linha Verde. Eu até poderia ter sentado, mas vi um semi-conhecido - desses que puxam assunto com você em festas que você se enfia por pura diplomacia com amizades que preza, enquanto você está aproveitando sozinho seus pensamentos e/ou a presença dos animais da casas - se aproximando do lugar e dei as costas e fingi que não vi. Difícil...

09h40m

O topo dos prédios da Paulista cobertos de neblina. Algo bonito e inédito, pelo menos para mim, de se ver. Já estou dez minutos atrasado. Mas acabo apertando o 10 do elevador. Subo até o terraço e fico admirando a paisagem e me arrependendo de não ter colocado a câmera na mochila. Tiro uma foto mequetrefe com o celular. Desço cinco andares. Abro a porta. Começa a ladainha que me dá dinheiro pra suprir minhas necessidades básicas.

10h00m

Fazendo as guias, comendo torrada com manteiga e bebericando chá mate. Havia dezesseis mensagens não lidas na pasta onde jogo os e-mails com requerimentos de guias. Faz frio. A música está agradável nos meus ouvidos, apesar de ser a milionésima vez que a ouço. Vou fazendo as guias sem pensar muito, sem me desgostar muito - apenas vou fazendo: colando processo aqui, inserindo a comarca ali, o código de recolhimento acolá e etc. Meu pensamento está além. Meu pensamento está em dois calhamaços de notas que emiti ontem, e em dois bolos de guias em cima deles. Suspiro, desanimado.

12h10m

Esses dois bolinhos de guias significam o seguinte: depois que eu emito as guias, e elas são pagas, e elas voltam e eu separo uma por uma de acordo com quem pediu, e essas pessoas assinam uma via e ficam com outra, e eu separo uma por uma de acordo com o segmento a que elas pertencem, e entrego a um rapaz que insere todas em uma planilha, algumas delas, de um determinado segmento, voltam pra mim. Aí eu enumero uma por uma. Depois, digitalizo uma por uma. Então, abro um sistema, faço a inserção de cada uma delas, anoto um número de protocolo que é gerado após o upload na própria guia; depois que envio os documentos, eles vão para uma página de análise, e ficam lá até que alguém do banco tenha a boa vontade de analisar e aprovar. Depois que eles analisam e aprovam o documento, geram uma pendência. Essa pendência vai pra outra página. Estou na página de pendências. Tem 54 pendências. Todas as pendências são de emissão de recibo - de um recibo que eles querem e que dá mil vezes mais trabalho do que o recibo que costumávamos usar. O problema é que essas pendências - identificáveis/discernidas pelo número do protocolo - não obedecem a uma ordem cronológica de indexação do documento - é possível encontrar na mesma página anexos inclusos em janeiro, fevereiro, março, abril, enfim. Os dois montículos de guias que tenho já estão na ordem das páginas. Mas ontem, não estavam. Pesquei essas 54 pendências que foram aprovadas entre outras 150 que estavam esperando um norte. Acabei montando uma planilha e me organizei melhor. Mas foi um inferno, devo dizer. O que importa é que eu tenho que: abrir essa planilha que criei (Planilha 1); abrir a planilha do recibo padrão do escritório (2); abrir a planilha do recibo que eles querem (3); abrir a planilha de faturamento do mês (4), que é de onde pegarei os números dos recibos e que, normalmente, faço o controle na unha de tudo que entra ou sai das contas. Graças à planilha que criei (1), consegui lançar todos os valores de uma só vez nessa planilha de faturamento (4). O que eu tenho que fazer agora é: pegar o número do protocolo na (1) e inseri-lo em todas as outras; depois, insiro o valor; depois, insiro o número do recibo. Quando tudo estiver redondo e bonitinho, imprimo uma via do (2) e duas do (3). Por sorte, a impressora fica ao meu lado. Aí a primeira folha que sai eu grampeio na segunda, coloco num canto, e a terceira e última que sai, em outro canto. Repita isso 54 vezes, responda às solicitações urgentes que chegam por e-mail e telefone, preste atenção na música e nos seus pensamentos e tente ignorar as conversas ao redor. Tente ignorar que há um dia, um céu, liberdade e uma vida do outro lado das janelas. 54 vezes. Repita.

13h20m

No meio desse rolê, as guias do dia chegam. São muitas. Os e-mails não lidos eram dezesseis, mas em muitos havia solicitação de três, quatro, seis guias diferentes. Minha mesa está repleta de papéis. Separo-os todos calmamente, pego as guias e separo todas mansamente, pessoa por pessoa. Para algumas, tenho que usar um programa e fazer etiquetas. A impressora fica de frescura. Tenho pressa porque tenho fome. Preciso comer, afinal. E a impressora enrosca, trava, desliga sozinha, imprime errado. Caralho.

13h45m

Estou no lugar que a comida é bem mais ou menos, mas enche a barriga e o preço cabe no bolso, além das variações de sucos feitos com frutas de verdade. Sempre peço omelete, mas a visão dele na minha memória não agrada meu estômago. O filé de frango daqui é terrível, duro. O bife é uma bosta. Calabresa me dá azia e nojo, às vezes. Peço calabresa e suco de açaí com morango. Tive a sorte de pegar uma mesa vazia.

13h50m

Sentaram dois rapazes do meu lado. Um deles tem a voz estridente. Fala alto. Pediu o prato do dia sem fritas. Pediu pro filé ser um pouquinho malpassado. Pediu o suco sem açúcar. Notei a impaciência do jovem que anotava o pedido. Ele notou o meu desdém também. Agora esses dois rapazes estão falando alto. Estão falando de balada. Estão falando de uma balada que é considerada a melhor de São Paulo. O da voz estridente ressalta, com a boca cheia (de júbilo, não de comida), que nessa tal balada há um elevador que serve do térreo ao primeiro andar. Depois, fala do circuito de baladas de Cuiabá, e das vezes que nem se lembra como chegou em casa.

Se Deus existe, a corporificação da bondade Dele é feita através dos fones de ouvido.

14h40m

Dormi no chão do terraço. Minha garganta piorou. Acordei meio perdido. E tinha uma morena de legging fumando no meu campo de visão. Desci de elevador até o quinto andar.

14h47m

Vejo que tem ligações perdidas no meu ramal. Vejo de quem é e um lampejo de impaciência cruza minha espinha. Boto uma bala na boca e subo as escadas até o oitavo andar. Distribuo as guias.

15h05m

Separo as guias por segmento. Todo dia a mesma coisa.

15h15m

Estou novamente diante das minhas quatro planilhas. Faltam vinte, daquelas cinqüenta e quatro repetições/pendências. Até esqueço que tenho que escovar os dentes.

16h00m

Terminei com a emissão delas. Agora, o que eu tenho que fazer é: nas vias solitárias do (3), bater o carimbo quadrado e pesado com o CNPJ da empresa, e também o carimbo fino com o nome da empresa por extenso, com a linha para assinatura do responsável. No (2) eu tenho que bater o carimbo quadrado da empresa, e um carimbo de "cópia". Na cópia do (3) que está grampeada atrás do (2), eu também tenho que bater esse "cópia".

Conto, por cima, umas duzentas e vinte carimbadas.

Bate na almofada. Bate na nota. Borra o dedo.

Repete.

Vira a folha.

Repete.

Repete.

Repete.

16h30m

Com tudo já carimbado e devidamente assinado, chegou a hora de digitalizar os (3) originais. Uma por uma, pelo número do recibo. Vou ao scanner e digito o primeiro número de recibo. Seis dígitos. Coloco a folha. A folha gira, some, dá a volta, e volta. O painel pergunta se quero manter a mesma configuração. "Sim". Aí eu apago um número (tipo, um "7") e insiro o do próximo recibo (um "8", claro).

Repita isso mais 54 vezes.

Não deixe a folha enganchar.

Não deixe que o aparelho puxe mais de uma folha.

Não se confunda com os números, para não salvar um recibo X no número Y.

Repita.

Repita.

Repita.

Repita.

17h00m

Agora, com tudo devidamente digitalizado, tenho que abrir o sistema do banco. Tenho que anexar recibo por recibo. Tenho que abrir uma tela onde farei a busca do documento no computador; nela, há também um campo onde insiro o número do protocolo, o tipo de documento que estamos enviando e um campo em branco, que tenho que escrever "recibo". Então, copio protocolo da (1), colo no devido campo, busco o recibo pelo número - ai de mim se errar! -, escolho o tipo de documento e escrevo "recibo".

54 vezes.

Ai de mim se anexar a nota Y no protocolo X.

Ai de mim se não escrever "recibo" todas as 54 vezes.

17h30m

Com tudo já devidamente incluso no sistema, com as cópias dos recibos (2) já devidamente arquivadas, agora tenho que grampear as guias nesses recibos (3).

54 vezes. Haja grampo! Haja mão!

Ai de mim se grampear a guia Z no recibo F.

Repita.

Repita.

Repita.

18h00m

Cogito e comento a possibilidade de sair mais cedo para ir ao hospital. "Só vou terminar essas guias e vou". Aí a guia dá errado. Aí preciso de uma informação, mas o site da AASP está fora. O telefone está fora. O tempo vai passando e vou ficando com preguiça da possibilidade de passar raiva no metrô e frio na rua pra chegar ao hospital e ficar esperando, passando fome, com vontade de cagar e tomar uma injeção no rabo, ver casais vomitando arco-íris por causa desse Dia dos Namorados PATÉTICO e etc.

18h01m

Acabo de me lembrar que não liquidei os recibos que foram pagos hoje. Separo-os. Hoje são só seis. Mas eu tenho que carimbar os seis. Escrever que o valor foi liquidado com destaque de tributos nos seis. Tirar três cópias de cada um dos três. E, cada um dos seis, tem dez folhas grampeadas atrás, e cada folha dessas é um lançamento diferente que eu tenho que fazer em um sistema. É. É. É...

18h30m

Deixei o lançamento dos valores pagos pro dia seguinte. Trabalho nesse texto com fúria, com tesão, com o típico espírito que eu gosto e que dá gosto de escrever.

19h30m

O problema dessa ereção literária é que a hora passa e você nem vê. Salvo o texto, mando pro meu e-mail, arrumo minhas coisas, escovo os dentes e saio na rua, sem saber direito para onde ir.

20h00m

Estou no Hospital Santa Cecília. Cheguei até aqui pegando três linhas de metrô diferentes. E, em cada uma delas, eu me apaixonei por uma mulher diferente. Ou mais de uma. O importante é que eu me esqueço de todas um segundo depois que me apaixono. Não sei. É estranho.

O saguão está abarrotado demais prum hospital particular. Quer dizer, já vim aqui soltando as pregas por causa de uma infecção intestinal e ele estava mais vazio. Só tem uma pessoa na minha frente, pra ser atendida na recepção. Fazer a triagem e mimimi. Mas nada acontece. Está sem sistema. Uma doutora loira, baixinha, bonita e com cara de invocada passa no meio de todos. Mil preocupações...

Desisto. Deixo pra amanhã. Que a garganta não tranque durante a noite e eu não morra.

20h15m

Eu pensei que pegando o metrô na segunda estação, conseguiria achar um lugar pra sentar; porra nenhuma. Encosto na parede da ponta do vagão e fico invejando os assentos alheios. Até que, na Sé, meus olhos faíscam. O restante do caminho é passando perreio.

21h35m

Inventei de ir procurar o que comer no Shopping Itaquera e só me fodi. Resolvi vir até esse mercado adjacente e também só estou me fodendo com fila e com aquele sentimento recorrente e pernicioso de que tudo está muito caro.

22h12m

Lotação. De pé. Com fome. Me sentindo febril. Olhando esses casais com sacolas de presentes. Todo mundo indo transar hoje. As meninas gastando absurdos com calcinhas mais transadas. Gastando com gel lubrificante. Hoje é o dia que algumas delas cedem o cu pro namorado. A rapaziada levando no shopping, comprando presente, bancando jantar e depois gasolina ou táxi e, por fim, motel. Conheço esse esquete porque já fiz parte dele uma vez. E tenho muitas amigas mulheres. É por isso que eu prefiro ir pra casa comer pizza e transar num dia aleatório. Aleatoriedade: vontade. Não algo projetado pelo comércio. Chegou meu ponto.

22h40m

Ok. Me fodi. Tem esse gato amarelo enorme e lindo que fica passeando pelas calçadas da avenida "principal" da vila, e que há alguns dias eu paro para brincar por uns cinco minutinhos. Só que hoje parece que ele reconheceu meu "chamado" e veio na minha direção empinando a bunda e esticando a cauda pra cima e miando e se esfregando nos meus tornozelos. Aí eu agacho e fico conversando com ele e passando a mão e tirando o dedo na hora que ele vai morder. Então eu levanto e ameaço ir embora e ele vem atrás. Eu paro, fico mais um pouco. Ele ronrona e sobe no meu colo. Morde meu dedo de leve. Esqueço que tenho fome e pressa de chegar, comer e dormir. Novamente, me levanto e vou caminhando. Ele, no meu encalço. Miando. Me olhando com olhos de gato de botas. Agacho e ele pula no meu colo e arrima o queixo no meu braço e fecha os olhos. Falo com ele e ele mia em resposta.

Ai, caralho...

22h55m

Ok. Decido que o levarei comigo e depois o trarei até aqui. Simplesmente não consigo enxotá-lo aos pontapés - não com esses olhos e esse miado. Ao levantar com ele no colo, ele mostra os dentes e faz aquele barulho característico de danger, e olha pra cima. Olho o que ele olha. E há um cachorro preto com a cabeça pra fora do muro. Olhos deles também brilham. Eu falo com ele com voz de retardado mental e ele dá uma quebradinha de pescoço pro lado.

Ganhei o dia. Zerei a vida.

00h07m

Esqueci a pizza no forno e o queijo ficou todo torrado. Os quatro queijos ficaram torrados, na verdade. Estou me sentindo estranho, e acho que é a febre vindo. E óbvio que houve certa animosidade da parte das minhas duas beldades felinas para com o gato enorme, mas tudo está sob controle. Aparentemente. Amanhã cedo deixo ele na esquina. Espero que com coragem de escorraçá-lo. Hoje cedo, na verdade.

É. É.

É...

12/06/2012

Hot Water Music - At The End of a Gun

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 13/06/2012
Reeditado em 13/06/2012
Código do texto: T3721229
Classificação de conteúdo: seguro
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