Da Senzala Para o Gueto - Corrigido

DA SENZALA PARA O GUETO

Jorge Linhaça

É interessante analisar a História do Brasil e os movimentos que culminaram com a chamada abolição da escravatura.

A chamada Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel com uma pena de ouro, atendendo aos anseios imediatistas dos abolicionistas e ao clamor internacional, não acabou com a condição subserviente do negro da sociedade brasileira.

É importante notar que todos os movimentos abolicionistas liderados por negros foram esmagados a ferro e fogo durante toda a história.

Castro Alves é muito mais lembrado do que Zumbi dos Palmares, ou qualquer outro líder ou intelectual negro ou mulato que lutaram contra a escravidão.

O fato de “heróis brancos” ao invés dos escravos ou negros forros terem conseguido o fim da escravidão em nosso país, se por um lado há de ser exaltado pelo resultado imediatista, por outro em nada ajudou a elevar a autoestima dos afrodescendentes.

Ao avaliarmos os escritores negros ou mulatos ao longo de nossa história, encontramos sempre a alusão ao fato de haverem sido educados por algum “benevolente” branco.

Talvez por isso, tais escritores contemporâneos da época da abolição, pouco ou nada demonstrem além de estereótipos nos personagens negros ou mulatos de seus romances.

A liberdade “concedida” ao invés da conquistada, é como o parto prematuro de uma criança que deverá passar ainda um bom tempo na incubadora.

Aos negros repentinamente livres, graças à “bondade” dos abolicionistas brancos, tirando-se raras exceções, faltava a condição de integrar-se a uma sociedade com uma cultura bastante diversa da sua.

Pior que isso, eram ( e ainda hoje o são por alguns, inclusive negros) encarados como os coitadinhos eternamente sofredores e ao mesmo tempo devedores de sua liberdade.

A escravidão deixou na população negra marcas muito mais profundas do que aquelas que as tiras dos chicotes rasgavam em suas costas.

A liberdade repentina tornou-os dependentes dos favores do homem branco, da caridade daqueles que pudessem empregá-los, educa-los ou fornecer-lhes biscates que lhes permitissem a sobrevivência ainda que em condições não muito diferentes da senzala.

A esmagadora maioria dos negros libertos engrossou o bolsão de pobreza das províncias, claro que quanto mais idoso e mais tempo o negro tenha vivido como escravo, menores as suas chances de se adaptarem a uma nova realidade.

O sonho de liberdade há de se ter revestido de ares de um amargo pesadelo para muitos na ocasião.

Tirou-se o negro da senzala e ele foi morar em infectos cortiços à margem da sociedade que não conseguia compreender ou aceitar, tão diversa que era da sua origem ancestral.

Iniciou-se um processo que poderíamos chamar de branqueamento da raça em busca de oportunidades e aceitação em meio a uma sociedade burguesa e até certo ponto complacente.

Durante muito tempo a liberdade de culto ou de expressão cultural do negro foi alvo de preconceito e perseguição.

Tudo em relação ao negro ou à sua conduta , estava associado à marginalidade no sentido de que era uma sociedade vivendo à margem de outra.

Quando não, via-se no negro a figura do criminoso, do ser movido por instintos primitivos e que precisava ser levado a aceitar a cultura e os costumes dos brancos.

Na literatura da época o negro é sempre tratado em papéis secundários e subservientes, sempre ligado à sensualidade e libertinagem, mesmo pelos autores afrodescendentes.

O branqueamento dos afrodescendentes não se dá apenas pela miscigenação racial, tão comum em nossa nação, mas o branqueamento se dá no modo de vestir, no alisar dos cabelos, no desejo implícito de ser e parecer-se com o branco em busca de ser mais aceito.

Não é incomum se ver em fotos da época, negros e mulatos vestidos como finórios e com os cabelos alisados tentando postar-se como os brancos daquele período.

Muito se fala da dívida moral que a sociedade branca tem para com os negros devido á condição de escravos à qual foram sujeitos em nossa terra.

Tal dívida não deve ser encarada somente pela ótica das chicotadas e castigos impostos aos escravos pelos seus proprietários. A dívida maior, se é que assim podemos denominar a evolução dos fatos, foi criada exatamente pela liberdade abortada, pelo libertar pelo libertar, sem o pensar em como absorver o negro na sociedade.

Alguém pode dizer, “melhor seria se os tivessem enviado todos de volta à África”, no entanto é preciso levar em conta que:

1-Havia gerações diferentes de negros sendo libertos, alguns quase que recém-chegados do continente negro, e outros já de terceira ou quarta geração em solo brasileiro, assim sendo, tínhamos aqui um grande grupo de afrodescendentes que não eram mais africanos e ao mesmo tempo estavam longe de conseguir assimilar a cultura europeia.

Essa falta de uma identidade própria foi a responsável pelo lapso que perdura até aos dias de hoje.

2- Muitos negros haviam sido capturados e vendidos como escravos por outros grupos tribais.

3- O cativeiro amalgamou várias culturas diversas, oriundas de locais diferentes da África, de tribos e nações diferentes entre si.

Existem questões interessantes a serem abordadas e discutidas quanto à miscigenação.

Quando se fala em população afrodescendente em nosso país logo se pensa em negros, mulatos e pardos.

No entanto, os mulatos e pardos não são igualmente descendentes de europeus?

A pergunta pertinente seria :

Como se consideram afinal os frutos da miscigenação étnica?

Qual a visão que tem de si mesmos? Essa mesma visão se mantem nos vários estratos sociais?

Aqueles que se mantiveram ou se consideram “100% negros”, tem qual visão sobre si mesmos?

Essa visão é tão variável quanto o local em que habitam.

Aqueles que vivem em guetos onde predomina a afro-descendência, talvez tenham uma visão ainda mais estereotipada do negro do que aqueles que vivem em outros locais.

Se os guetos acabam por tornar-se um núcleo de resistência cultural, por outro lado ocupam hoje o papel das antigas senzalas, criando uma espécie de “apartheid” voluntário, seja este consciente ou não.

A consequência de tudo aqui exposto nestas poucas linhas, é que ainda hoje os pensadores negros sentem na alma o peso de uma escravidão que parece perpetuar-se além dos grilhões físicos. Podemos dizer que, em grande parte, tirou-se o negro da senzala, mas, falhou-se em tirar a senzala do negro.

Quando vejo algum movimento de “orgulho negro” fico imaginando o que isso quererá dizer.

Para mim parece algo como ter orgulho de ser desigual, de ser um grupo à parte da sociedade e que manifesta a sua intenção de não se deixar absorver inteiramente por ela.

Vejo isso como bastante louvável, mas se não houver um movimento real de elevação das condições de vida dos afrodescendentes estaremos apenas perpetuando os erros do passado, criando uma linha divisória entre negros e brancos.

Segmentar a sociedade não me parece a melhor solução para qualquer problemática.

As políticas protecionistas, como as cotas para estudantes negros, embora possa parecer para alguns como uma coisa producente e até mesmo necessária, não deve ser perpetuada, sob a pena de impedir o real crescimento da autoestima dos afrodescendentes.

O sistema de cotas volta a repetir os mesmos erros do passado, criando a impressão de que o negro é menos capaz que o branco e estará sempre sujeito às benesses da sociedade para poder progredir.

É preciso resgatar a autoestima do povo, seja ele, branco, negro ou mestiço, não existe diferença entre a miséria do branco ou do negro, miséria é sempre miséria.

A miséria não reside apenas na falta de recursos materiais, a miséria ocorre primeiro, na alma humana, viciada na ociosa espera de um super-herói que lhes venha salvar a pele.

Há pessoas bem postas socialmente que carregam dentro de si a miséria, independente de sua raça ou qualquer outra distinção. São aquelas que só conseguem olhar para os próprios umbigos e tornam-se fáceis de manipular cedendo ao medo de ter seus “direitos eternos e ancestrais” ameaçados por qualquer movimento social que venha a por em risco sua condição “privilegiada” ou o pouco que julgam haver conseguido através de seu esforço pessoal.

Tais pessoas são alvo e presa fáceis para os discursos de ódio que brotam das bocas de determinados candidatos em épocas de eleições; são levados ao desespero diante do fato de que se assegurem direitos específicos a determinadas camadas da população às quais, consciente ou inconscientemente consideram inferiores a si mesmos.

Debater atitudes politiqueiras ou protecionistas é por certo salutar, é importante, porém, que as pessoas se posicionem com certo grau de inteligência e conhecimento sobre o que é ou não adequado, independente da roupagem que se de a determinadas leis ou decretos

Enquanto houver espaço na política para esse tipo de discurso discriminatório de que só esses estados possuem cabeças pensantes e inteligentes e que o resto do país é composto por miseráveis e ignorantes, incapazes de exercer conscientemente a sua opção democrática, estará sendo perpetuado o estigma de que o negro, o nordestino e o pobre não reúnem condições intelectuais para dirigir as próprias vidas.

Nas últimas eleições presidenciais, vários grupos extremistas ligados a um determinado candidato, culparam o norte e nordeste do país pela derrota do mesmo.

Uma mocinha paulistana chegou a pregar que deveríamos ''afogar um nordestino por dia.'

Nos últimos dias saiu a sua sentença:

Algumas ações de trabalho comunitário porque a “pobre menina de classe média ” já haveria sofrido o bastante por conta de sua atitude impensada.

Num País onde se prega que racismo é crime de alta gravidade, causa estranheza que o ministério público paulista tenha optado por aplicar pena tão branda à delinquente.

Melhor do que isso, apenas o fato de que a sentença foi dada às vésperas do início da campanha eleitoral para prefeito de São Paulo, onde o tal candidato que levou a mocinha a ter tal atitude, resolveu lançar-se candidato novamente, apesar de jamais concluir um mandato que seja.

Nunca é demais nos lembrarmos de que a ascensão do nazismo deu-se justamente através do discurso da inferioridade ou dos perigos que determinados povos, raças ou setores da sociedade poderiam representar ao poder do Estado.

Negros; Judeus; Ciganos; homossexuais; Testemunhas de Jeová e membros de outros grupos religiosos foram enviados aos campos de concentração durante a segunda guerra mundial.

No Brasil há certos candidatos que, valendo-se de blogueiros de aluguel, e-mails falsos atribuídos a fulano ou sicrano, e com um discurso leviano e maquiado, pregam ideias racistas e separatistas, considerando que algumas regiões deste imenso país são incapazes de compreender a grandeza de suas ideias.

Não é a toa que sempre que se inicia uma campanha eleitoral, os mesmos candidatos, alguns deles incapazes de terminar seus mandatos por conta da prepotência e da ambição política de alçar voos maiores, comecem a disseminar na internet os antigos e conhecidos e-mails, “reveladores” de um pretenso plano para destruir a democracia em nosso país.

Não é à toa que esses mesmos candidatos travestidos de paladinos da moralidade e dos bons costumes, mentirosamente atribuam a si coisas que não realizaram, usurpando realizações de outros para ganharem a aura de grandes administradores e realizadores.

É essa classe de pessoa que pretende manter as “sub-raças”, segundo seu ponto de vista, controladas em guetos econômicos e manipulada como uma boiada que desconhece a sua força e se permite ser tangida por meia dúzia de vaqueiros experientes.

Não por acaso, alguns desses políticos se perpetuam há décadas no poder justamente nos estados onde os barões da economia mantém ainda algum poder.

Se antigamente eram os barões do café ou do gado que determinavam o rumo das eleições, hoje são os barões da mídia que se ocupam de procurar desmoralizar os adversários de seus apadrinhados.

Enquanto permitirmos que esse tipo de candidato ganhe apoio de pessoas desconectadas da realidade por se sentirem acomodadas em sua pretensa superioridade, continuaremos a criar guetos e disseminar a descriminação velada contra aqueles que tiveram ou tem menos oportunidade.

É importante, portanto, que as pessoas se ocupem de analisar a história por um prisma que vá além do limiar de seus próprios interesses pessoais.

É importante que se veja para além dos ternos caros e dos falsos sorrisos para que não nos encontremos amanhã, fazendo parte de uma realidade com a qual não compactuamos conscientemente.

Estabelecer o medo é a maneira mais fácil de criar uma multidão de inocentes úteis em defesa de causas pouco louváveis.

Investigar a verdade, isento das pressões da “maioria dominante” é o melhor caminho para termos a consciência tranquila.

Salvador, 12 de junho de 2012.