UMA PEQUENA CRÔNICA
Na manhã de um domingo chuvoso do ano de 1979 sofri um acidente de automóvel na av. Pompéia, no bairro do mesmo nome, em São Paulo. Nos breves momentos em que o carro desgovernado tombou e deslizou pelo asfalto molhado com as quatro rodas para cima, entre barulho de latas amassando e cheiro de gasolina derramada, talvez pela proximidade com a morte, passaram pela minha mente como num filme de cinema, cenas da minha vida onde predominaram a imagem de minha mãe e lembranças da minha infância. Hoje, já avô, com a certeza de que já vivi mais de três quartos da minha existência, as vezes fico a imaginar como será a minha passagem para a chamada eternidade. Assim como aconteceu no acidente será que nos últimos instantes lembrarei dos momentos agradáveis que passei com meus amigos e familiares? Lembrarei de minha mãe jovem e bonita a varrer o assoalho de madeira da nossa casa humilde mas aconchegante lá no interior do Paraná quando eu era ainda muito criança? Lembrarei das peripécias e lambanças que pratiquei na minha infância e adolescência? Lembrarei das matinês lá no Cine Teatro Municipal da cidade onde morava quando empolgado imaginava cavalgar ao lado de Roy Rogers, Durango Kid, Rocki Lane, Johnny Mack Brown, e outros “mocinhos” do cinema distribuindo tiros e socos na bandidada, ou, como daquela vez em que influenciado por um filme de Jim das Selvas eu e meu primo Jair construímos uma canoa para brincarmos no rio? E do “Fantasma” (o espírito que anda), “Cavaleiro Negro” (e seu cavalo Satan), “Tarzan” (Krig-ah!-bandolo), e outros gibis que adorava ler me lembrarei? E das mulheres por quem me apaixonei, lembrarei? Lembrarei de Odete, Dalva, Eunice, da portuguesa Maria do Rosário e outras que meu coração volúvel e infiel amou? E daquela prostituta ruiva da qual nunca soube o nome, com quem tive minha primeira relação sexual, lembrarei? Lembrarei da minha filha e do meu neto? E das fortes emoções que vivi quando às segundas-feiras assistia as gravações de “O Fino Da Bossa” com Elis Regina no Teatro Record, em São Paulo, ou daquele sábado em que quase não consegui dormir impressionado que fiquei ao assistir “Deus e o Diabo na Terra do Sol” de Glauber Rocha, ou da primeira vez que vi no palco Maria Bethânia, toda de branco, pés descalços, cantando “Carcará”, ou de Rutinéia de Morais no impressionante final de “Navalha na Carne” de Plínio Marcos, ou ainda de “Arena Conta Zumbi” e “Morte e Vida Severina” peças que me marcaram para sempre, dos bons livros que li, das músicas de Tom Jobim, Edu Lobo e Chico Buarque, dos sambas de Noel, Wilson Batista e Nelson Cavaquinho, dos choros de Pixinguinha, do clarinete de Paulo Moura, do bandolim de Jacó, das violas de Tião Carreiro e Almir Sater, das letras de Aldir Blanc e Paulo César Pinheiro, dos temas medievais de Elomar, das vozes de Orlando Silva e Pena Branca & Xavantinho, das crônicas de Ruben Braga e João Ubaldo Ribeiro, dos poemas de Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto e tantos outros, dos sonetos de Vinicius de Morais e Florbela Espanca, dos contos de Marcos Rey, João Antônio e Guimarães Rosa, dos romances de Jorge Amado, Mario Palmério e Érico Veríssimo, dos textos de Neruda e de Drummond, será que lembrarei de tudo isso?
Se me fosse dado o direito de escolher gostaria de morrer com todas estas lembranças, segurando a mão da minha filha e ouvindo "consolação" no violão de Baden Powell.
Será que é pedir muito?
fim