20.3.2005— 


Leituras


Fiz minha primeira leitura filosófica aos treze de idade — o diálogo Mênon, de Platão —, influenciado por um velho amigo da família. Já tinha lido ou folheado quase todos os livros que meu pai trazia para casa, mas eram sempre obras de ficção, o que existia de melhor no nosso regionalismo literário. Minha mãe, admiradora incondicional do marido, havia largado os estudos na quarta série primária, e tentava preencher a lacuna escolar devorando pacientemente nossa estante de livros, como um cupim-narigudo.

Nenhum dos dois interessava-se por filosofia. Tinham mesmo uma certa prevenção contra os grandes pensadores e não deviam ter visto com bons olhos a intrusão de um mentor intelectual em minha vida. No entanto, como nunca censuravam os filhos, deixaram correr frouxo.

Para mim, o diálogo platônico revelou-se uma tremenda descoberta. Cortei um dobrado para entender o que estava lendo (e não entendia mesmo), mas foi empolgante. Quem lia Platão no meu bairro? Qual dos meus colegas de idade seria capaz de sustentar uma discussão comigo sobre a virtude na economia moral da pólis? Quem se arriscaria a uma sessão de maiêutica socrática? Quem deixaria de odiar Carlos Lacerda (estava-se em começos de 1964) para compartilhar com aquele pivete de cabelos vermelhos o seu próprio ódio contra o cidadão Anito, um dos principais acusadores no processo que levaria Sócrates a ingerir a cicuta?

De fato, tornei-me um garoto presunçoso, insatisfeito com os professores do ginásio, indiferente às suas lições, chegando a desafiar o de história para um debate em sala de aula sobre o conceito de arete na filosofia grega. No fundo, queria impressionar intelectualmente os colegas de turma, mas eles viram em mim um monstro e passaram a evitar-me. (Excluído! Que luxo! Melhor que o soneto.)

Em casa, as coisas não eram melhores. Fiquei arredio, caladão, filosofante, coberto de espinhos heraclíticos por todo o corpo. Trancava-me no quarto para ler e escrever, comia pouco e não tomava banho, ocasionando sem saber pesadas discussões entre minha mãe e meu pai.

Mas tudo isso foi breve como a hegemonia de Tebas.

Lembro-me que, no auge da obsessão filosófica, disposto a nunca mais tocar num romance, descrente dos ficcionistas, um belo dia meu pai me aparece em casa com o Pedra Bonita, de José Lins do Rego, ainda cabaço. (Para quem não se recorda, naquela época alguns livros não tinham os seus cadernos cortados pela guilhotina, e era preciso descabaçar as folhas com uma espátula ou uma faca, delícia pura.) Folheando aqui e ali, detendo-me um pouco mais neste ou naquele parágrafo, deixei-me insensivelmente penetrar pela estranha musicalidade dessa voz monótona e bela. Em minha opinião, José Lins superou-se contando essa história. Terminado Pedra Bonita, reli-o em voz alta, e em seguida lancei-me à obra toda do romancista, com os altos e baixos de um autor integralmente apaixonado pelo ofício.

Estava curado. Nem tanto, é claro, ao longo da vida, mas hoje tenho o meu Montaigne para baixar a bola de vez em quando.

Dizia Nietzsche que não se filosofa impunemente na velhice; na juventude, ou antes disso, diria eu, pode ser um veneno.