As teclas de marfim do piano austríaco eram amareladas pelo tempo. Sobre o piano uma passadeira de labirinto tembém amarelecida pelo tempo. O tempo tinha se encarregado de amarelar quase tudo, mas não a magia. Raramente o piano cantava, só em ocasiões especiais. " Toca Marieta" e lá ia ela dedilhar as valsas vienenses, predileção de Oscar. Era o único som que se ouvia na casa/sonho. O muro que a rodeava tomava forma de ondas como a proteger seu interior. Era uma casa única e parecia plantada fora de hora e lugar. Cercada por enormes arvores que lhe davam uma sombra maravilhosa, também serviam de abrigo as centenas de orquídeas. Nada tinha das casas que a cercavam. Alí morava um sábio. Essa casa tinha alma. Essa alma era fina, de compleição miúda e resistia em vestir os ternos que a posição dele exigia. Contentava-se em deslizar suavemente pelo assoalho, pés descalços, com seus pijamas de seda. A escada de madeira cheirosa, circular levava-o ao paraíso, onde poucas pessoas tinham acesso. A maravilhosa biblioteca. Os livros, aos milhares, deitavam no jacarandá. Suas maõs magras, dedos finos, dedilhavam entre os livros e, mesmo se estivesse de olhos fechados, acho que pelo faro, encontraria o livro procurado. Sempre alguns discípulos o seguiam. Entre os livros, muitos autores paraibanos, alguns de sua autoria sobre Medicina legal, história das artes e um que foi célebre Exortação aos Jovens.
Durante mais de 25 anos foi Presidente da Academia Paraibana de Letras e foi um dos fundadores da Universidade Federal da Paraíba. Ocupou diversos cargos no governo. Nada disso o fazia mudar. Continuava humilde, afável, pediatra doce que atendia por prazer.
Recebia José Lins do Rego da mesma maneira que recebia José Américo de Almeida ou Graciliano Ramos, seus amigos/irmãos. Vizinho a biblioteca tinha um caramanchão com uma trepadeira de jasmins brancos, miúdos que perfumava todo o ambiente.Era alí que os amigos ficavam "esquentando o sol" segundo eles. E lá vinham os refrescos de pitanga a refrescar o calor. Os risos vinham em cascata. De vez em quando, um levantava e ia até as estantes, voltava a mostrar aos outros alguma coisa que o tinha interessado. Talvez até de sua autoria. Era uma troca de palavras encantadas, eram pedaços de versos misturados a causos vividos ou sonhados. E pensar que nada disso foi registrado.... Muita coisa foi esquecida, ou o tempo fez esquecer e se perdeu.
Nas paredes, uma majestosa coleção de espêlhos que até tinham nome. Lembro perfeitamente de um pequeno que se chamava Maroca. Um emoldurado em cristal vermelho tinha uma história que ele contava a todos. Escutei-a centenas de vezes. Estava ele num cruzeiro, quando foi chamado para socorrer uma criança que passava mal. Ele não só cuidou da criança, como ficou ao lado dele até aportarem com o menino já á salvo.O pai, um chinês, o presenteou com o espêlho, em reconhecimento.Uma bela coleção de pratos ornava as paredes da sala de jantar, vinham de toda parte do mundo. Lembro de um que se chamava marquesinha.
Falo de Oscar de Castro, meu tio que criou minha mãe como filha, daí considerá-lo meu avô. Hoje virou estátua de bronze frio, nome de rua, de escola, de IML, mas acredito que poucos recordem dele.
Infelizmente, como nas histórias de fada, essa não tem um final feliz. Com a partida dele, a ganância venceu. De noite, as máquinas misturaram toda uma vida, deixando dor e revolta aos que ficaram e não concordaram com a venda.
Resta em nós, descendentes dele, esse amor, esse respeito, essa saudade do grande homem que foi OSCAR DE CASTRO.