Desceu redondinho
Rosa Pena
Logo no primeiro dia de aula, querendo avaliar o nível de aprendizagem da turma, mandei que fizessem uma redação. Considero a redação o melhor termômetro para medir o nível de um aluno. Vi as caras feias e, para aliviar o clima, dei um tema bem light: escrever sobre um filme que tivessem visto e gostado.
Meu rosto, apesar de simpático, demonstrava claramente que eles iam ter que fazer sim, com ou sem vontade.
Entre conversas e bolinhas de papel jogadas, começaram a fazer e aos pouquinhos reinava o silêncio. Demoraram de propósito, então terminou o tempo e recolhi as redações, para ler, corrigir e comentar na próxima aula.
De noitinha, sentei-me com um pote de pipocas e fui ler a redação e a alma de meus novos alunos. Desfilavam por mim, na grande maioria, narrações de filmes de violência. De repente, surge uma. O título: Daniel, as mãos de pênis. Uma clara referência a “Edward mãos de tesoura”, com a diferença que o protagonista, Daniel, tinha dez pênis, e a explicação dele, aliás muito bem explicada, era a de que, como adorava mulher, gostaria de ter um harém, e suas mãos satisfariam as mulheres aos lotes. Tive a certeza, naquele momento, de que tinha em mãos três fatos: um desafio de força, sabia que ele queria medir minha reação; um menino revoltado; e um escritor em potencial.
Li, reli, corrigi e coloquei um “BOM!!!” no final.
Na aula seguinte, encontrei a turma com risinhos, pois certamente o líder já havia narrado sua façanha aos seus asseclas. Avisei que entregaria e comentaria as composições no final da aula.
A turma ficou um tanto sem graça e fez um certo silêncio. Reinava a expectativa de um esporro ou um castigo. Procurei dar uma aula gostosa, falando de propagandas de TV, da linguagem apelativa delas. Sabia da ansiedade da galera, e estiquei ao máximo o assunto.
Faltando dez minutos para o final, peguei as benditas redações e comecei a falar sobre elas.
Busquei a parte boa de cada uma, ressaltei a falta de originalidade e, no meio de tantas — propositalmente não iniciei e muito menos finalizei com o “mãos de pênis” —, falei do texto de Daniel.
Disse-lhe que a idéia e o desenvolvimento estavam excelentes, mas que estava mal-informado na questão de agradar as mulheres. Tanto na quantidade quanto na qualidade do sexo.
Avisei-o de que uma, apenas uma mulher, às vezes é o verdadeiro barato na transa, e que não se centrasse no pênis, pois sexo não se resumia à penetração. Onde ficaria o carinho do antes, durante e depois da relação?
A turma ficou muda. Daniel deu-me um sorriso cúmplice.
Quem tinha sido testada havia sido eu, e não fui reprovada.
Naquele ano, pelo menos em minha matéria, tive um bom índice de aprovação.
No final do ano, saí da escola, pois não concordava com a filosofia da direção.
Nunca mais soube desses alunos, exceto Daniel, que vejo pela mídia, atualmente um excelente executivo na área de marketing, com cervejas brigando pela sua criatividade.
A Skol desceu redondo, né meu amigo?
2004
PreTextos/Rosa Pena
Rosa Pena
Logo no primeiro dia de aula, querendo avaliar o nível de aprendizagem da turma, mandei que fizessem uma redação. Considero a redação o melhor termômetro para medir o nível de um aluno. Vi as caras feias e, para aliviar o clima, dei um tema bem light: escrever sobre um filme que tivessem visto e gostado.
Meu rosto, apesar de simpático, demonstrava claramente que eles iam ter que fazer sim, com ou sem vontade.
Entre conversas e bolinhas de papel jogadas, começaram a fazer e aos pouquinhos reinava o silêncio. Demoraram de propósito, então terminou o tempo e recolhi as redações, para ler, corrigir e comentar na próxima aula.
De noitinha, sentei-me com um pote de pipocas e fui ler a redação e a alma de meus novos alunos. Desfilavam por mim, na grande maioria, narrações de filmes de violência. De repente, surge uma. O título: Daniel, as mãos de pênis. Uma clara referência a “Edward mãos de tesoura”, com a diferença que o protagonista, Daniel, tinha dez pênis, e a explicação dele, aliás muito bem explicada, era a de que, como adorava mulher, gostaria de ter um harém, e suas mãos satisfariam as mulheres aos lotes. Tive a certeza, naquele momento, de que tinha em mãos três fatos: um desafio de força, sabia que ele queria medir minha reação; um menino revoltado; e um escritor em potencial.
Li, reli, corrigi e coloquei um “BOM!!!” no final.
Na aula seguinte, encontrei a turma com risinhos, pois certamente o líder já havia narrado sua façanha aos seus asseclas. Avisei que entregaria e comentaria as composições no final da aula.
A turma ficou um tanto sem graça e fez um certo silêncio. Reinava a expectativa de um esporro ou um castigo. Procurei dar uma aula gostosa, falando de propagandas de TV, da linguagem apelativa delas. Sabia da ansiedade da galera, e estiquei ao máximo o assunto.
Faltando dez minutos para o final, peguei as benditas redações e comecei a falar sobre elas.
Busquei a parte boa de cada uma, ressaltei a falta de originalidade e, no meio de tantas — propositalmente não iniciei e muito menos finalizei com o “mãos de pênis” —, falei do texto de Daniel.
Disse-lhe que a idéia e o desenvolvimento estavam excelentes, mas que estava mal-informado na questão de agradar as mulheres. Tanto na quantidade quanto na qualidade do sexo.
Avisei-o de que uma, apenas uma mulher, às vezes é o verdadeiro barato na transa, e que não se centrasse no pênis, pois sexo não se resumia à penetração. Onde ficaria o carinho do antes, durante e depois da relação?
A turma ficou muda. Daniel deu-me um sorriso cúmplice.
Quem tinha sido testada havia sido eu, e não fui reprovada.
Naquele ano, pelo menos em minha matéria, tive um bom índice de aprovação.
No final do ano, saí da escola, pois não concordava com a filosofia da direção.
Nunca mais soube desses alunos, exceto Daniel, que vejo pela mídia, atualmente um excelente executivo na área de marketing, com cervejas brigando pela sua criatividade.
A Skol desceu redondo, né meu amigo?
2004
PreTextos/Rosa Pena