Elias
De uma alegria contagiante, sabia se portar em qualquer meio e ainda que a situação lhe fosse adversa, sempre se saia bem. Era menor de idade e só não era o mascote no trabalho por se portar e produzir melhor que muitos veteranos. De família humilde, em breve se tornaria o esteio da casa, como ele mesmo fazia questão de dizer. A idade avançada dos pais lhe preocupava e a ele cabia o papel de protegê-los.
Trabalhávamos numa grande oficina, onde, no inverno chuvoso (caracteristico da regiao Norte) se recuperavam as máquinas pesadas usadas na construção das estradas no verão de sol. Sua área era a mecânica de motores e seu chefe já se vangloriava do futuro mecânico que preparava com esmero. A pontualidade e assiduidade eram absolutas e isso cativava mais ainda seus superiores que não viam o dia em que chegaria sua maioridade.
Uma certa manha se atrasou por um motivo justificável e foi no meu setor, o escritorio, que foi se justificar e pedir para marcar sua presença. Deusdete, meu colega de ofício ainda brincou: "Só marco a tua presença se tu me der esse boné...". "Não posso!", disse sorrindo. "Ele serve pra proteger minha cabeça..." e saiu, ainda sorrindo. Nessa mesma manha sai para fazer as "compras do mês" e também me atrasei um pouco. Teria que voltar as dez horas e acabei voltando quase onze.
Ao entrar no pátio do local de trabalho estranhei o silêncio profundo que reinava no ambiente. A primeira idéia que me surgiu foi a de que me atrasara muito, mesmo; e já haviam todos ido almoçar. Mas, consultando meu relógio, ainda faltava mais uma hora para tal. No meio do percurso encontrei um colega a quem questionei o motivo de tal silêncio.
- Sabe o Elias? - Veio o meu colega.
- Ele chegou atrasado mas já está ai. Chegou antes da minha saída...
- Não, cara. Não é isso.
- O que foi então?
- Vai lá você mesmo ver...
No setor do Elias estava uma aglomeração sem tamanho. Eu procurava entender o que estava acontecendo a medida que me aproximava, abrindo caminho. A cena que vi foi tão chocante que me comove até hoje, quase quarenta anos depois. No chão estava o corpo inerte de meu colega. Um pano cobria-lhe a cabeça, mas a cabeça parecia não estar alí, dado o pequeno volume que se formava. Olhando ao redor então compreendi a tragédia. Elias estava trabalhando com a cabeça sob o travessão que une os braços de uma pá mecânica, daquelas que recolhem coisas no chão e colocam em caçambas. A barra que sustentava a peça escorregou e a cabeça dele foi esmagada com tamanha violência que o cérebro espirrou em diversas direções.
No dia seguinte no enterro do colega ninguem conteve as lágrimas, ainda que soubéssemos que nenhuma dor o probre coitado sentiu. Nos dias posteriores e até hoje não consigo esquecer o fato, mais ainda pelas instigantes palavras que dissera ao negar o boné na brincadeira com o Deusdete.