Bilhete na geladeira...
A rotina é uma feiticeira, ela tem o poder de transformar as práticas de nosso cotidiano em pesarosas atitudes corriqueiras...
Ela (a bruxa feiticeira) nos faz repetir incessantemente as mesmas coisas, todos os dias: levantar pela manhã, fazer o café, acordar as crianças e pô-las para a escola, ver o esposo sair para o trabalho e enfim, ocupar-se das atividades domésticas como lavar, passar, arrumar a casa, cozinhar, ir ao supermercado, pagar as contas, desdobrar-se em mil e uma atividades, terminar o dia cansada e com a sensasão expressa de que faltaram horas nele... Assim que se sentia Anethe.
Os lembretes na geladeira também faziam parte dessa rotina: Mapinha de remédios do pequeno Bill, data e horário da reunião de pais, dentista das crianças, apresentação do grupo de balé da Amandinha, vencimento das prestações, ...
Eram tantos lembretes que, às vezes, faltavam imãzinhos para fixar. E Anethe tinha tanto a realizar, que se sentia fatalmente engolida por aquela rotina...
Mas naquela manhã de dezessete de janeiro, depois de uma longa noite de contundente silêncio e de insônia latente, acordou o dia amarrotado pelo pouco dormir e muito rolar na cama, espreguiçou-se e demorou-se um pouco olhando o quarto, com aquele claro jeito de quem nada via... Estava cansada...
Então, sentou-se na frente do espelho de sua peteadeira, e olhou-se longamente por alguns instantes, ateve-se nas marcas de olheiras, no rosto abatido pela noite de insônia, nos cabelos desgrenhados e sem brilho, nos olhos igualmente sem brilho pela ausência da luz da paixão...
Desviou o olhar para seu marido/irmão, ele ainda roncava e babava a fronha do travesseiro... Anethe já não se reconhecia... Pensou:
"A rotina transformou e me ofereceu uma vida totalmente glacial, mesmo que lá fora o sol nunca pare de brilhar..."
Levantou-se, despiu-se do velho camisola e foi nua para o baneiro, banhou-se deixando a água morna escorrer em sua pele, secou-se, passou hidratante, perfumou-se, entrou naquele langerrie guardado para uma ocasião especial que nunca veio, colocou aquele vestido azul que um dia o seduziu, maqueou-se como quem iria a uma festa, fez um penteado bonito, calçou único par de scarpin, pegou a bolsa de ombro contendo todas as futilidades impressindíveis a toda mulher...
E, quando já estava pronta, escreveu em um pedacinho de papel do bloquinho de cabeceira, em letras caixa alta:
"CANSEI! ADEUS!!! ANETHE"
Caminhou para a cozinha, abriu a porta da geladeira e tomou um copo de água, fechou e colou esse sintético bilhete fixado por um ímã de borboleta.
Não chorou, não sorriu. Apenas abriu a porta da cozinha, o portão e saiu...
Irene Cristina dos Santos Costa - Nina Costa, 02/06/2012
***Nota da autora: O fato cá descrito é real, a data 17 de janeiro de 2002 e o que nela aconteceu; aqui porém, pincelado de imagens literárias, nomes fictícios e uma pitada de lirismo tosco...