DDD - Diário de Derrotas [32]

Estou indo a alguma festa, de mãos dadas com duas mulheres que são minhas namoradas. Ao descermos do ônibus, na estação de metrô, uma ex-namorada atravessa na minha frente. Nos abraçamos. Esqueço tudo ao redor. Ela me abandonou friamente, mas ainda tenho amor por ela. Esqueço as duas e viajo acima da cidade; vejo a cidade abaixo como num mapa desenhado. Quando caio do céu, estou perdido na Cidade Tiradentes. Sem nenhuma das minhas mulheres. Vago pelas ruas que lembram a Cohab 1; ruas vazias e sujas. Encontro uma criança agachada, jogando bolinhas de gude num buraco feito na terra. A chamo pelo nome. O pirralho me olha. Sorri. Ele sangra nas gengivas. Cospe no meu rosto. Cambaleio e estaco diante de um ponto de táxi. Só quero ir pra casa, não importa o quanto isso me custe - eu tenho muito dinheiro. Mas o taxista nega.

Então eu acordo com as gatas miando enlouquecidamente. Já está dia feito e dou um sobressalto e penso: perdi a hora. Olho no relógio do celular: seis e quarenta da manhã. Cheiro bom de café fresco. Roço os pés e durmo mais quarenta minutos.

08h25m

- Não. - Falo comigo mesmo, descendo a calçada do lado oposto de onde, uma quadra adiante, está parada a lotação. O farol está aberto e o tráfego está fluindo maravilhosamente. - Não, caralho. Porra. Puta que pariu do inferno, vai começar essa desgraça.

Vou xingando e descendo. Até corro um pouco. Paro em cima da faixa e fico olhando o motorista da minha barca, lá do outro lado, e pro farol bem verdinho acima da minha cabeça. Então, todos sobem enfim, ele engata a marcha e sai.

O farol fecha na mesma hora. Atravesso numa boa...

08h48m

Cheguei na estação. Como sempre, vou chegar dez ou quinze minutos atrasado, mesmo depois de ter mudado de horário.

A pessoa que está na minha frente na catraca está com problemas. O Bilhete dela não passa. Não quer passar. Acima de nossas cabeças, o trem treme tudo. O trem que, provavelmente, como sempre, perderei. O Bilhete dele continua não funcionando e todas as outras catracas já estão cheias. Agonia.

09h31m

Não sei como diabos, mas já estou na Paulista.

10h50m

Redijo o seguinte e-mail:

"Prezados, bom dia!

Em virtude do Day Off, não estarei no escritório na segunda-feira (04/06). Portanto, peço que as solicitações de recolhimento de custas feitas entre as 11h00m de hoje às 11h00m de segunda sejam direcionadas ao Fulano, com cópia para o Bertano.

As solicitações de emissão de boleto devem ser encaminhadas ao Sicrano."

Envio, com a certeza de que esse será o ponto alto do dia.

Envio, com a certeza de que há um erro de concordância verbal...

13h15m

Descobri esse restaurante por acaso. Por um valor que bem cabe no meu orçamento, posso comer à vontade. Infinitas vezes. O único problema desse lugar é que a comida não é exatamente uma maravilha. Às vezes está fria, crua. O lugar em si é feio. O único ponto alto daqui além do valor é a mulher do caixa: baixinha troncuda, das pernas grossas; cara de safada. É.

13h45m

Subo até o terraço na intenção de dormir. Coloco o celular pra despertar daqui vinte minutos, deito no chão sobressalente (uma espécie de murinho), cubro o rosto com o antebraço.

14h03m

Acordo com um sobressalto, com um clarão que faz com que eu não consiga abrir os olhos sem resmungar. Sonhava que dormia no beiral do prédio e que caía. Fosse num dia péssimo, eu teria achado o sonho uma delícia. Hoje o dia só está mais ou menos. Abro os olhos. Não gosto mais de dias cinzentos. Gosto de acordar e ver o céu azul, límpido na medida do possível, com os urubus volteando ao longe; pontinhos pretos circulando suavemente, livremente, gostosamente.

E uma cambada achando que Deus nos criou à sua semelhança... Pedaços de estercos fadados à Lei da Gravidade e às próprias castradoras leis de sobrevivência e desigualdade. Há mais do suposto Divino num urubu sarnento do que num ser humano.

O celular desperta e eu me encaminho ao elevador. Me olho no espelho de cima a baixo. Encolho a barriga e encho o peito de ar.

14h30m

Corro contra o tempo emitindo notas. Alguém terá que levá-las até o Tatuapé, e provavelmente esse alguém serei eu - de novo. Ontem mesmo fui lá no último minuto - e no horário de pico - pra levar um reles envelope. E eu vou lá - como disse, enfrentando horário de pico, baldeações, pessoas, chateações, ônibus, trânsito, sono, tédio, raiva, vontade de cagar, sede -- lá, que fica a pouco mais de meia hora da minha casa --, entrego as paradas, volto ao escritório faltando uma, no máximo uma hora e meia, pro encerramento do meu expediente, aí, depois, então, posso voltar pra minha casa. Portanto, vou emitindo essas notas com ódio nos dentes, torcendo para que não sobre pra mim.

15h45m

Estou com uns quatro quilos de envelope no colo.

Estou no primeiro Metrô (que vai até o Paraíso). Depois, enfrentarei outro (Até a Sé). Dali, mais um (até o Tatuapé). E então, um ônibus. E uma caminhada. Está chovendo lá fora. Não tenho guarda-chuva. Teve o dia inteiro pra chover. A semana inteira, inclusive.

15h59m

SANTO CRISTO REI!

16h05m

Estou na Linha Vermelha que, segundo o que me consta, é a mais abarrotada do mundo. Do MUN-DO. E está bem cheio aqui. O ar é carregado, nojento. As janelas estão fechadas. A composição se arrasta. Sinto-me desconfortável com essas coisas à tiracolo.

16h30m

Tenho que entregar dois dos envelopes para algum funcionário da expedição, e ligar em três ramais, para que outros funcionários venham buscar o resto ou trazer mais coisa pra eu carregar com um sorrisão nos dentes. Está chovendo. A moça do outro lado do vidro faz o ritual de sempre: puxa os envelopes, carimba, cola uma etiqueta, me devolve o protocolo e volta à sua mesa. Essa é a parte que eu mais gosto - ela voltando à mesa, montada num salto alto.

Ligo pra primeira pessoa. Ela diz que já vem descendo.

Ligo pra segunda. Só chama.

Ligo pra terceira.

- O envelope já está aí, meu querido.

Tomo a bronca e desligo.

Ligo pra segunda. Só chama. Ligo pro escritório.

- O número da fulana só chama. Tem outro?

- Peraí que eu vou ver.

Continua chovendo. Ô harém que é esse lugar!

- Ó, liga nesse.

- Hum.

- E nesse.

- Falo com quem?

- Fulana no primeiro, Bertana no segundo.

- Firmeza. Valeu!

- Falou!

Ligo no primeiro. Ele tinha mencionado uma Raquel, aí me atende uma Janaína. Tremi a voz. Expliquei a situação. Pediu pra eu esperar.

17h00m

Continuo esperando, mas do outro lado da rua, numa padaria, bebendo pingado e vendo uns retardados fazendo papel de idiota no programa da Galisteu, com aquela perniciosa certeza de que eles ganham de duas a vinte vezes mais do que eu. Já tem cinco minutos que pedi um pão na chapa.

- Amigo - Peço pro rapaz que sempre me atende - cadê meu pão?

- Ô NEI - Ele grita pro chapeiro - É PRA HOJE O CHAPA, TÁ?

Uns caras que estavam ao meu lado caem na risada. Chove lá fora. É uma tarde agradável.

17h02m

Meu pão na chapa chegou. Aparentemente, fritaram uns bacons e depois colocaram ele em cima. Está uma bela duma merda, o gosto.

17h19m

Estou no ônibus lotado, com esses três rapazes que caminhavam atrás de mim no caminho pro ponto. Um ficava aloprando o outro, chamando de bicha e etc., mas, no fundo, eu sentia que era pra mim, por causa do meu cabelo. Continuavam com a zoeira no ônibus. Daí eu olhei pra cara de um deles. E gostaria que fosse comigo mesmo a zoação em relação à pederastia: esse que eu olhei é marido de uma cidadã que eu tive um caso durante um longo e frutífero ano. Não que eu ache isso lindo, mas é a vida. Justiça poética?

17h30m

Esse metrô do caralho parecia estar cheio, aí decidi pegar o trem e adivinha? Vazio, um passando atrás do outro - lá do outro lado dos trilhos, dos muros, das grades. Aqui, na plataforma do trem que vai pra Luz, não passa nada, nadinha, porríssima nenhuma. Mas, em compensação, aqui do meu lado... Adivinha?

18h20m

Chego ao escritório. Abro a porta da recepção e a Nega, mesmo falando ao telefone, olha pra minha cara e cai na risada. Bate o dedo no pulso, como quem diz: "Só agora você voltou!?". Com os ombros derreados, putinho da vida, deixo os documentos com quem os pediu e desço as escadas espiraladas até o meu andar. Abro a porta já querendo o pescoço de alguém - mas só de fachada. Afinal, o que é enfrentar NOVE baldeações no Metrô de São Paulo num dia chuvoso e em horário de pico? E saber que ainda mais três delas e um ônibus me esperam daqui quarenta minutos?

19h20m

Termino de redigir isso aqui com dor de cabeça, azia, sono, tenesmos e um latejamento na coxa direita.

01/06/2012

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 01/06/2012
Reeditado em 02/06/2012
Código do texto: T3700444
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