1/4 do tempo

Quando a solidão me toca um pouco mais fundo; quando nos sentimos que o mundo se esqueceu de nós; quando a tristeza toca em meu íntimo; é neste momento que sinto a falta de um quarto só para mim, um quarto que mesmo delineado pelas suas quatro paredes ultrapassaria os limites do mundo conhecido.

Um quarto onde tivesse uma mesa grande com aquele vidro polido e debaixo dele inúmeras gravuras, entre a mesa e o vidro. Figuras das coisas que gostamos, uma delas poderia ser um mapa do mundo onde me debruçaria nele e procuraria uma pequenina cidade, escondida perto de um imenso lago, ou um rio que caminhasse para o sul, e para lá eu viajaria sem ter sequer um passaporte, uma mala de roupas ou uma aspirina. Chegaria lá em um instante, o avião estaria no mundo apenas como uma tecnologia ultrapassada, visitaria cada cantinho da cidade sem medo ou temor de pessoas ou do próprio tempo.

Em uma das paredes haveria um grande mapa de posicionamento de estrelas, galáxias, planetas, aglomerados, nebulosas, um mapa luminoso que ao fechar o quarto e apagar as luzes seria uma linda noite estrelada e eterna, e fazer dela uma noite distante, uma noite sem nevoeiros, sem nuvens de chuva, sem o frio e o sereno, ali poderia observar todas as estrelas, descobrir novos mundos escondidos atrás de nebulosas distantes, observar nomes que jamais imaginamos existir, ali o telescópio teria um aumento e uma luminosidade proporcional a minha imaginação, seria talvez o maior telescópio e o maior observatório que teria visitado até então.

Um "computador", seria mágico ali um computador, com uma poltrona confortável de fronte a uma tela grande e colorida então poderia me sentir dentro de uma nave espacial simulando uma descida em nosso satélite natural, subiria e desceria quantas vezes eu quisesse, ficaria na lua por horas, explorava suas dunas, seu lado escuro, sentiria sua pouca gravidade, voltaria para o nosso planeta no momento em que achasse que chegou a hora de voltar ao mundo; Poderia também estar a frente de uma grande corrida de formula um, numa das pistas mais importantes do mundo, venceria o grande prêmio e se isto não fosse possível, voltaria e comemoraria novamente, pois aqui a FISICA era eu.

A música não poderia deixar de estar ausente, ritmos variados enriqueceriam o local mágico, quem sabe poderia eu estar no camarote apreciando uma bela sinfônica e me sentir ao lado de um grande compositor, talvez meio surdo; Também poderia estar no palco de um grande campo, movendo multidões, entusiasmado com uma afinada guitarra em meio a luzes completando o grande espetáculo; E por que não poder tomar parte com um bandolim junto a um grupo que entoa uma melodia de "dor de cotovelo" debaixo de um poste de luz fraca, quem sabe até de frente a uma janela, e a luz aqui iluminaria somente para nós, do conjunto, como realmente deveria ser.

Em um dos cantos estaria minha maquete ferroviária com curvas suaves e certas, subidas e decidas com sua inclinação correta e adequada as condições de carga que a ferrovia atenderia; Um túnel escuro viria a frente iluminado apenas pelo farol da locomotiva; Uma estação espera por mim onde pessoas se despedem com lagrimas nos olhos; Outros vão em viagem e a alegria é tanta; Um casal de namorados se despedem arduamente pois ele irá para um longo caminho de estudos na cidade grande, exatamente como naqueles filmes que vemos e nos emocionamos; Uma passagem de nível está chegando e ali em meio ao toque do sino, pessoas em terra acenariam para seus queridos ou amigos que estão no trem; Desvios emocionantes que nos levam a depósitos de cereais ou ao depósito de óleo para abastecer a locomotiva; O apito, que aqui é a vapor e não elétrico, nos dá a real sensação de voltar ao tempo, ali as condições de trafego seriam comandadas pela minha imaginação e por nossas emoções. Em um canto do vasto campo algum reparo talvez fosse necessário, falta um pouco de grama perto da encosta do morro ou talvez falte alguns pinheiros perto do desfiladeiro, em meio a este cenário algumas pessoas voltam de seus trabalhos; Um outro sem nada para fazer pesca sentado na beira do lago, um trabalhador empedra um trecho da linha, outros dão manutenção a rede elétrica ou a iluminação da rua.

Laboratório fotográfico, quem vê esse nome "laboratório" logo pensa em uma sala com prateleiras repleta de vidro com produtos químicos, tubos que saem fumaça, vidros com seus líquidos que borbulham e outros truques com uma pessoa lá dentro toda descabelada com cara de maluco, isto seria a imaginação de cada um, pois nada mais do que uns quinze vidros com produtos químicos, quatro banheiras (que mais parecem bandejas), muita água corrente, negativos pendurados e fotos sendo reveladas, imagens e mais imagens emergem do papel dentro de uma destas banheiras em meio a solução química, a luz vermelha e bem fraca é o guia em meio a escuridão. O ampliador fotográfico é acionado e a luz forte grava no papel a imagem que iremos revelar. Mágico, como um passe de mágica as imagens surgem, sejam grandes ou pequenas, ali o dia teria uma hora e a noite se confundiria em meio ao escuro vermelho.

No outro canto um divã para reflexões, pensamentos, e porque não para um belo sonho acordado. Adorava fazer isto quando era pequeno, as vezes minha mãe me mandava fazer alguma coisa em algum lugar distante e não ia de ônibus, e no caminho iria desvendando alguma história que gostava ou alguma cena que adorava. Ali sonharia talvez com a minha família reunida numa mesa no dia de natal e faria como em meu tempo de criança, almoçaria tudo esperando a hora de comer as castanhas e nozes quebradas no batente da porta e depois brincar com meu brinquedo que acabara de ganhar.

Um livro grande, tipo destes que vemos em museus e que assinamos na entrada, preto com capa dura e aba amarelada, ou melhor dourada; em suas linhas e folhas registraria meus desejos, meus pensamentos, meus anseios, minhas lutas, o que fazia naquele local, enfim um diário no tempo. E um dia distante talvez sentado ali, neste mesmo quarto, já em meio as mãos trêmulas, e com o pincinê na ponta do nariz, sentado em uma cadeira, que tem de ser de balanço, reviveria meus dias de solidão, os dias em que minha imaginação andava solta por aquele quarto, o quanto era feliz naquele local nos dias em uma tristeza profunda enchia meu coração.

"Quarto mágico", talvez seja este seu nome, poderia ser também "quarto alegre com porta triste"; O capacho que existiria ali na porta era um capacho triste, talvez não por opção própria, mas estava repleto de tristeza pois parecia ser ali que ela (a tristeza) ficaria quando entrasse pôr aquela porta; E que na saída parecia já estar "seco" pois a alegria voltava a minha face, o brilho nos olhos e o coração já quase restaurado. Talvez então seria um "quarto da terapia"; um "quarto de emoções" alegres para corações entristecidos. "Quarto dos sonhos" e por que não um quarto com a inscrição na porta: "1/4 do tempo".

Crônica selecionada para o livro “Noturno II” do XXXII Concurso Internacional Literário das Edições AG de 2011

Domingos Richieri
Enviado por Domingos Richieri em 31/05/2012
Reeditado em 11/08/2012
Código do texto: T3698597
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