Funeral

O mundo é diferente do lado de cá. Eu posso ver todos, enquanto ninguém pode me ver. Para falar a verdade, isso não é algo novo. As pessoas já não me notavam antes. A única diferença é que, agora, não é como se elas não quisessem me ver, elas simplesmente não podem.

Sinto-me livre desse mundo obscuro e repleto de sombras. Sinto-me livre das pessoas, dos julgamentos, das críticas, dos olhares, das humilhações, das mentiras, dos abusos. Ainda assim, embora tudo pareça estar bem, há duas coisas que me incomodam: o que eu vejo e o que eu ouço. Vejo as pessoas cometerem erros e serem guiadas a um mundo vazio. Ouço os planos que algumas pessoas fazem para ver a derrota das outras, as mentiras que contam para se “dar bem”. Vejo sentimentos fingidos e amizades forçadas.

Ainda bem que não faço mais parte desse mundo.

Ontem aconteceu o meu velório. Havia poucas pessoas. A maioria só estava ali porque foi obrigada pelos professores da escola onde eu estudava. Outra parte, provavelmente, não tinha algo melhor para fazer, ou queria apenas rir de mim pela última vez.

No fundo, ninguém estava sentindo minha falta. Ora, eu morri. E o que eu significava para aquelas pessoas? Absolutamente nada!

Meu pai foi convocado a dizer algumas palavras em homenagem ao seu “filhinho querido”. Tudo que ele dizia não passava de mentiras:

-Meu filho era um garoto feliz. Ele era amado pela sua família, recebia toda atenção possível e nunca lhe faltou carinho. Tínhamos uma relação, de pai para filho, que eu posso considerar umas das melhores e das mais saudáveis...

Ele continuou inventando calúnias e forçou bastante para que uma lágrima pudesse molhar seu rosto. Em meio àquelas pessoas, havia uma que realmente queria estar ali, pelo menos foi o que me pareceu: Juliana, a garota que tentou me ajudar alguns minutos antes de eu morrer. Ela não conseguiu devolver o meu caderno, portanto leu cada página que eu havia escrito. Sabia, dessa forma, que tudo que meu pai falava era mentira. Deslocou-se até o centro e começou a falar:

-Você não passa de um mentiroso. Tudo o que você está dizendo não passa de uma estratégia para manter a imagem. Mas a sua imagem verdadeira é podre. Se eu acreditasse em perfeição, eu poderia dizer que você é um perfeito idiota que não soube amar o seu próprio filho. Você me dá nojo. Todos vocês me dão nojo. –ela gritou. -Creio que não estão aqui porque se importavam com ele, acertei? Então porque não vão para o inferno e deixem que ele tenha um velório digno?

Juliana caiu de joelhos e começou a chorar.

Não entendi ao certo o porquê dela estar agindo daquela forma. Nós nem éramos amigos. Talvez ela estivesse revoltada com o que as pessoas fizeram comigo, talvez ela passasse por algo parecido, não sei. De qualquer forma, ela estava perdendo o tempo. Porque, no final das contas, ninguém se importa. Ninguém nunca se importou.

Os professores levaram a turma, inclusive Juliana, de volta para a escola. O funeral havia terminado. E, junto com ele, se foi a minha história, a história de um garoto que, em alguns dias, teria sua vida esquecida e as memórias sobre ele, apagadas. Fui umas das vítimas da indiferença e do desapego das pessoas. Acredito que fiz a escolha certa. Preferi morrer para sempre a viver morrendo dia após dia.

E se é para viver uma história sem rumo, que seja em outro mundo.

(Texto IV - Final - A Vida de Richard - Coletânea de Textos)

Lianderson Ferreira
Enviado por Lianderson Ferreira em 30/05/2012
Reeditado em 09/01/2014
Código do texto: T3696262
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