Na Terra e no céu

Estive rapidamente em Poções e conversei com Dudui Fagundes. Eu não sabia que era dono de bloco e fui perguntar exatamente o que ele achava da presença deles na sexta e sábado à tarde na praça da Festa do Divino, dias de encontros dos velhos amigos. Recebi de volta uma nuvem carregada de razões, daquelas que saem raios pesados e trovoada como nas revistas em quadrinhos. Atirei no que não ví e acertei o que estava querendo ver. Fiquei com o sentimento de ter cutucado uma onça. Era a saudade contra o progresso, o passado e o presente num eterno embate.

Voltamos a discutir sobre a evolução da festa e a conversa ficou parecendo bate- papo de futebol que vira política e nunca acaba antes da última cerveja. Então, sem muito conformismo, eu acho que para voltarmos ao passado só fazendo a Festa na porta do cemitério ou no céu.

Quando existia o catecismo, aprendi que havia o lugar dos bons e o lugar dos maus - o céu e o inferno. O cidadão morria, ia para o purgatório e daí para o céu ou o inferno. Mais otimista, sempre enxerguei apenas o céu, aquele de nuvens altocumulus, as que parecem carneiros.

Na hora dos enterros, olhava para cima e ficava pensando por qual nuvem a alma teria entrado no céu. Só parecia inferno nos enterros à tardinha, quando o sol estava se pondo. Mas aquilo, todos sabiam, era o pôr-do-sol e não o inferno. Claro, quem gastaria para construir um inferno num lugar onde todo mundo é gente boa?

Nossa viagem da semana é passear na Poções do céu e matar as saudades. Lá, existe uma outra Poções com as coisas resolvidas. O portão imaginário é a praça da Liberdade, onde ainda estão os restos do obelisco. Em meio aos eucaliptos o bába de Bira Fernandes já começou a rolar, enquanto na prefeitura acontece a reunião de velhos prefeitos com Olimpio Rolim, Otávio Curvêlo, Lulu, Anibal Carvalho e Dr. Aloísio. No outro lado da praça, uma conversa animada entre Argemiro Pinheiro, Chico Paradela e Pepeu, que está esperando Raimundo Paradela passar com o canário na gaiola para fazer “chama” no alçapão, ali na Lapinha.

A camionete amarela de Luiz Sarno acabou de chegar da Fazenda Caetitú com um “panacum” de marmelos e cinco latões de leite. Veio, também, um feixe de copos de leite para ornamentar a igreja na missa de domingo. Na casa ao lado, está Carlito Torres, ainda de pijama de calças curtas.

Mais abaixo, seu Corinto Sarno voltando da caminhada de inspeção matinal das obras da igreja e do Hospital. Fernandão Schettini fuma um cigarro no maior papo com Vicente Paladino e Elier Barreto. Zóstenes Vaz, na balaustrada da varanda, apreciando o movimento da rua e ainda não tirou da garagem a pick-up Rural para ir a fazenda. Ed Porto Alves já se mudou para a casa que era de Valentim Sarno.

As fogueiras de São João foram queimadas no dia anterior e Humberto Schettini pergunta para Chico, meu pai, se vai repetir a dose. Dôca ainda comenta o último filme que assistiu. Alcides Batatinha manda entregar a encomenda dos talões de notas. Dona Fetinha já está com a cruzadinha na porta, em fila, rumo a igreja.

Pelo menos, no céu, tem um botafoguense, Fernando (Bigode) Schettini vibrando que o Botafogo ganhou do Bangú de Ulisses do rádio. Vicente Ventura continua anunciando as notas fúnebres, calculando as probabilidades do Vasco ser campeão. Muita gente vestindo as roupas confeccionadas por Otoniel Costa e Armando Jacó, com as famosas sandálias de pneus fabricadas por Zé Cambuí. Tenente Celino, delegado, mantendo a ordem na cidade.

Na antiga praça Deocleciano Teixeira (atual Raimundo Pereira Magalhães), o velho Roque já abriu a padaria mas ainda lê uma passagem da bíblia antes de começar a trabalhar. Miguel Labanca sobe, vai em casa tomar um café. Zé Martins abre as portas da loja de ferragem de Américo Libonati. Licinho Fernandes já está vindo fumando o seu Continental sem filtro para abrir a loja dos Sarno. Irineu já está com as portas de ferro da “Alvorada” suspensas enquanto Armando Rolim puxa os ferrolhos da farmácia. Jaimevique inaugurou o armarinho. Emério Pithon e Miranda recebem o novo carregamento de brinquedos do Bazar Natal. Emilio Sarno na porta do armazém com o paletó sobre os ombros. Dr. Ari Dias joga gamão com Ademar da Sucam. Abel Magalhães, de suspensórios, conversa animadamente com Daniel e Zezinho Alves, vizinhos de negócios. Mem Fernandes Santos (Nenen), de camisa abotoada até o pescoço, conta mais um “causo” para Pasquale Paladino.

A essa hora, o Padre Honorato já se prepara para celebrar a missa em latim. Só Tonhe Gordo escutará o que vai dizer. Dona Anina Sarno, Marianina Schettini, Rosina Libonati e as irmãs Elza e Odete Lago são as fiéis mais assíduas. Nas lojas, Seu Liquinho Macêdo, tranquilamente, distribui aos assinantes o novo número do quinzenal “Folha do Povo”.

José Sobrinho passa com as malas de jóias defronte a marcenaria de Giovanni Sola. Fernando Ruggiero Schettini acabara de se mudar para a casa da antiga rua do Beco Apertado. Seu Jambrim Gusmão, com a nova camionete, vai tomar café com Dona Amélia, sua filha. Ubirajara Pombal caminha calmamente para abrir o Banco da Bahia que era dirigido por Amaro Elon. Djalma Barbosa passa com o caminhão carregado, iniciando nova viagem. Adelino limpa a camionete Fargo que ainda tem a gasolina original de fábrica. Pedro da Barreira, na varanda de casa, se benze quando toca o sino da igreja matriz. Lá vem Seu Lourival com os livros contábeis debaixo do braço, vai para coletoria de Carlos Rizério, Luiz Ribeiro e Bernardo Coêlho. Ida Benedictis molha as roseiras do jardim enquanto Dona Julieta não pára de elogiar Boa Nova. No seu novo Karmanguia vermelho passa Ernesto Benedicts em direção ao fórum. Boêmia Marinho e a professora Zirinha juntas, vão para o Alexandre Porfírio e para a banca da Lapinha, respectivamente.

O cine Santo Antônio se prepara para um novo filme. Vavá e Nicola Leto aproveitam o dia para a manutenção do cinema. Tena já preparou o cartaz. Pedro França e Zé Paladino marcam a continuação de um jogo de bilhar na Visgueira.

Na praça da Igrejinha, o serviço de alto-falantes anuncia mais uma página musical. Armando Manta escreve o novo poema no Sombra da Tarde, aos olhares de Elmano Barros Moraes. Samuel Abreu com o novo açougue. Floriz Neto sentado à porta lendo o jornal. Desde a cinco da manhã, o Sargento Severino faz aula de educação física para o pessoal do Ginásio.

A rotina da praça é quebrada com a construção de mais um pavilhão, sinal de que a “furiosa” banda de tio Nadinho está prestes a tocar. Espera só um sinal de Seu Cidinho na hora em que o leilão para. Já se ouve o som das pancadas da batuta no trombone de seu Antonio Fagundes, que aperta o nó da fralda da curva baixa do instrumento para aparar a saliva. O povo começa a se aproximar. É a vez de João Leiloeiro descansar. Mais um litro de whisky é consumido na mesa de Badinho, Zelinho Fagundes, Nenzinho, Quito, Edvaldo Miranda, Omar, Liligo, Dr. Ruy Espinheira e o velho Miga, grandes amigos. Vitinho Borba com a sua Yashica registra mais um momento da festa. De paletó e gravata, Antônio Leto chega de Conquista. Cícero Gusmão ofertou mais um bezerro.

Ao lado, nas barracas do pessoal do ginásio, os reservados estão cheios. Quem está lá? José Manoel, Carlos Nei, Vicentão, Juvencinho Lago, Heraldão Curvelo, Leonel Messias e a figura inesquecível de Miguel Antônio Schettini (Satobão). A palha de arroz é o chão da praça.

Olha lá Mituca, com a barraca de laçar as garrafas com aquelas varas de pescar e argola de metal na ponta. Jogando, com as varas, Jônatas Fagundes e Aziz Galdino Freire.

Já é hora de voltar prá nossa Poções, a da terra. Mas antes, vamos passar no Bar de Arnóbio Andrade, tomar a saideira e ainda comer um pão com manteiga na padaria de seu Arlindo Cambui.

Estamos com saudades de tantos que vivem por lá. Todos estão bem vivos nas nossas mentes e nas nossas histórias. Aproveitam o eterno descanso enquanto ainda não chegam os blocos.

Pois fique certo Dudui, os blocos já têm espaço na festa da mesma forma que um dia tiveram a quermesse, o leilão, as argolinhas de Mituca, a “furiosa de Tio Nadinho”, a roda gigante e a barraca de Pulú do cachorro quente...

Nós, os mais velhos, perdemos o nosso lugar e a tradição de rever os amigos, obviamente. A sorte é que existe ainda uma possibilidade – o céu.

(Com a colaboração de Jorge de Ucha e Michele Sangiovanni)

Luiz Sangiovanni
Enviado por Luiz Sangiovanni em 04/02/2007
Reeditado em 22/05/2007
Código do texto: T369614