Vamos embora
É madrugada. Não durmo. Não quero dormir. Há bares em toda esta cidade. E eu preciso de álcool. Durmo pelo álcool. Não se aproximem muito de mim. Exalo álcool e fumo. Poesia, não exalo mais.
Vinte passos, talvez menos, um bar me aconchega. Escuro. Mesas postas de casais em transe. Deixei meu quarto com um alemaozinho tentando arranjar o condicionador de ar. Deixei a poesia dormir mais cedo. Mais doce. Mais funda. Saí.
Quero beber vódica. Não posso com vódica. Meu fígado se estranha com o cheiro de vódica. Mas peço. Vódica. A moça do balcão me sorri. Como é que todos sorriem tanto por aqui? Uma cerveja também.
Um magrelo, que mal consegue segurar o violão, toca Chico Buarque. Toca Djavan. Toca tudo o que eu não devia ouvir. E quando, de novo, volta ao Chico, em "Assentamento", a moça do balcão me pergunta pela namorada.
- Esposa - retruco.
Ela limpa o balcão e serve um companheiro de desdita. De lado meu.
Volta pra mim:
- E a aliança?
A menina é clara. Chama-se Clara. E tem uns olhos azuis. Às vezes verdes. Não me decido, entre as luzes. Mas chama-se Clara, isto é certo. Ana Clara. E deve haver sardas em sua voz. Me fala do noivo. Não diz o nome do noivo mas mostra-me o anel dourado à direita mão.
- E a aliança? - pergunta-me, novamente.
Eu a perdi. Tempos há tempos. Num rio qualquer. E, rio abaixo, não se deve ofertar vida à cata de anéis.
- Eu drenaria o rio - ela diz.
Toca Milton. Eu bebo vódica e a moça tem os olhos verdes e azuis.
Sardas na voz.
Eu amaria Ana Clara. Qualquer homem teria o dever de amá-la. E eu amei. Quando ela me disse do noivo. E beijou o noivo no ar. Um noivo que talvez dormisse. Ela o beijara pra mim. E cantara o nome dele para mim. E o rosto do noivo de Ana Clara era o rosto mais lindo que não vi.
E ela me serve a vódica com a mesma desenvoltura com que me diz que eu deveria comprar novo anel dourado.
- Mulheres gostam de homens casados.
- Eu sou casado.
- Mas tem que ter aliança. tchê!
Mas eu a perdi. Há tempos, perdi. Num rio, já disse. Que correnteza me levou o que já nem me servia mais!
O menino que toca o violão é apenas um menino e toca "Nascente". Nada nasce em mim. E o sol anda longe. A moça de anel dourado, não. E me serve vódica. Meu fígado não se dá com vódica. Meu cérebro não se dá, também.
Mas eu bebo. E os casais todos enamorados nem me veem. Ana Clara me vê, me serve e me pergunta pelo dourado anel.
- Não há anéis que me sirvam.
Ah, a maldita poesia em mim. E Ana Clara se ri. Um riso doce. Que se ela não trouxesse anéis nos dedos, eu a levaria pelas mãos, pelas praças à procura do dono, do dono do nome gravado no ouro daquele anel.
Tem os olhos azuis. Verdes. E me serve vódica como me fizesse um grande favor. E faz.
O raquítico, agora, toca Gil. E toca bem, o danado. "Drão". Ana Clara, de novo, me pergunta pelo anel. Eu já quase me debruço sobre o balcão.
E devo dormir. E me ergo, a custo. E saio. Almas tantas me esperam pela porta. Eu cuido de todas. Abraço a todas as almas que me vêm a mim. E Ana Clara, talvez, peça, silenciosamente, entre sardas e sussurros, que eu um dia me encontre um anel que me sirva aos dedos.
Não, Ana. Não mais me servem anéis. Que meus dedos são dedos, são outros tantos dedos outros e sempre a mudar.
Não me servem, Ana. Não há anéis que me sirvam. E, pela praça, peço às almas que me seguem, que cuidem tanto de Ana. E que, se algum dia, por descuido qualquer, ela perca seu anel dourado num lago, num rio, num mar, que elas, as almas, as minhas almas, se prestem a drenar cada vão de rio, cada lago, cada fundo de mar, em busca do anel de Ana.
E canto feliz por ela. E quero tanto que Ana seja feliz. E me lembro do menino cantando Chico. E eu vou. Esta cidade mora em mim. A poesia não mora mais.
"Binho, Bel, Bia, Quim, vamos embora".