O RUÍDO DO SILÊNCIO


Aquelas foram as 48 horas mais longas da minha vida. Decidi, como uma experiência de vida e científica, ficar em silêncio completo durante uma escala de trabalho em Posto Fiscal. O ambiente é sempre barulhento, cheio de brincadeiras, uma zombaria interminável, na qual eu, mesmo inconscientemente, acabava me envolvendo. O resultado: colhia múltiplos desentendimentos que, com o tempo, tornavam-se intermináveis. 

Para me acorrer em empreitada tão difícil, decidi escrever um cartão na qual simplesmente dizia: “eu estou em voto de silêncio”. Imaginei que seria fácil. O primeiro desafio foi convencer meus colegas de profissão da veracidade da minha intenção. Viajaria de madrugada em um veículo com dois deles, levar-me-iam de carona ao Posto Fiscal que dista 300 km de nossa cidade. Chegaram alegres e vibrantes. Saudaram-me com alegria. Eu sorri, assim que coloquei minhas malas no carro, entreguei-lhes o cartão. A fisionomia mudou, logo riram, acreditando tratar-se de uma de minhas brincadeiras. 

Começaram, em tom de deboche, a levantar múltiplas hipóteses acerca de minha estranha resolução. Provocaram-me ao máximo, e quando me olhavam eu fazia uma expressão contida com os olhos e a cabeça. Aos poucos foram desistindo de me provocar, vencidos pelo peso do silêncio, embora, de tempos em tempos, voltassem a buscar explicações. 

Quando chegamos ao Posto, anteciparam-se e saíram espalhando minha intenção. A zombaria zoou forte desta feita. Policiais, digitadores, chapas e o meu próprio chefe não puderam acreditar. O supervisor ficou com ar encrencado, não acreditando na firmeza de minha resolução. Chamei-o, com um sinal, para a sua sala, para uma conversa. Prevenido, eu levara um pequeno bloco de rascunho, pois saberia que deveria explicações. Entreguei-lhe o cartão. Ele olhou desconfiado e perguntou: 

- Como pretende tratar com o público? Vai ficar em silêncio? Anotei rapidamente no bloco: 

- Vou mostrar-lhes o cartão e se quiserem maiores explicações, escreverei no bloco. 

- Não vai dar certo. Tinha que fazer isso logo hoje? Eu o encarei com firmeza e tornei a escrever: 

- Eu não tive alternativa: é uma questão de vida... Coloquei as reticências para que me entendesse e deixei a conclusão a seu cargo. Ele me olhou e alertou: 

- Se atrapalhar o andamento do trabalho, pedirei que interrompa o voto. Fiz que sim com a cabeça. Anotei algo no papel e entreguei-lhe: 

- Obrigado! Ele me fitou, constrangido. 

De volta ao ambiente do Posto, tive que ouvir inúmeras provocações. Zombaram de todos os modos, tentaram tirar-me do sério. Com o correr das horas, diante de minha surda determinação, fui ficando esquecido e o efeito sobre o ambiente foi devastador. Os homens começaram a diminuir a intensidade da zombaria. Os motoristas, quando me faziam perguntas, em meu guichê, eram apresentados ao meu cartão e alguns respondiam que estava tudo bem, ao par que outros afirmavam me respeitar e admirar pela fé. 

Fui-me acostumando ao silêncio. Na volta para casa, no carro com os colegas, não me importunaram. Eu estava louco para dizer algo. Cheguei em casa e voltei a falar com a esposa e a família. Na semana seguinte, de volta à viagem com os colegas, algo havia mudado. Falavam comigo, conversaram, as brincadeiras continuaram, mas em um outro tom, em um outro nível. O meu silêncio foi tão forte, que durante muito tempo, repercutiu em cada um de uma maneira interessante, como um alerta. Ficaram incomodados por saber que alguém, o tempo inteiro, participara de um trecho de suas vidas, sem emitir palavra alguma, como uma incômoda testemunha que passou a conhecer-lhes melhor, de modo que eles nunca haviam pensado. Hoje eu sinto necessidade de falar menos, aprendi a ser mais eloqüente graças à minha experiência com o silêncio...