desalinho

Primeiro, o olhar do bom dia, acompanhado do estalar do beijo na testa; depois o olhar preocupado e longe, seguido de um riso sem graça, depois do café; o olhar despercebido, depois de um outro acontecido qualquer; o olhar aflito, depois do longo silêncio que, naquele dia, chegava a doer os ossos; enfim o olhar seco e choroso, acompanhado de um abraço forte que nos demos amedrontados, que nos demos enganados. Achávamos que se nos abraçassemos tão forte e tão demorado, recuperaríamos aquilo que havíamos perdido. Realmente achávamos que, por apertar tanto os nossos corpos, chegaríamos num estágio superior, algo como um abraço de almas. Que nada. Por fim, o olhar profundo, com um traço de pena estampado no rosto, e com um choro entalado por dentro, que não refletia sequer um único soluço na sua cara pálida ou na minha queimada de sol. De repente, o desentrelaçar dos nossos dedos abafava o último suspiro do laço que ainda ligava nossos corpos. Depois veio o cheiro de mala velha e mofada deitando sobre a cama; o gemido de passos largos sobre as tábuas velhas da sala; o barulho inconfundível de motor ligado. O último olhar, indecifrável, foi trocado entre a porta arreganhada e a janela entreaberta do carro, seguido de um ruído de automóvel desaparecendo, gradativamente, pela estrada. Depois o soluço. E a lágrima. Não nos foi necessária uma palavra sequer. Estava simplesmente terminado, e sabíamos. Mas é como se a parte humana, destinada a criar laços, não se encaixa-se nesse mundo que faz tão necessário o desapego. Por mais que saibamos - e como - dessa natureza de metamorfoses e perdas que é a vida, fica sempre uma angústia no olhar e um vazio no peito, porque dói quando a estranheza toma conta, porque dói - e dói muito - quando duas almas não conseguem mais se reconhecer, e se perdem.