O novo Caminho para as Índias
(A crônica de Rio Grande, uma cidade lusitana)
Quem sabe partilhas deste sebastianismo, tão próprio de povos de origem lusitana. Tu que aqui no Sul, fundaste o estado, lutando contra os espanhóis que invadiram a cavalo tua igreja matriz, talvez sejas tão esperançosa na visão libertadora e salvadora de teu povo, que nem te dás conta do que é ficção ou realidade. Afinal, cá estão entre irmãos, os que superaram a dor através da busca incansável do morto, procurando-o em cada esquina, apontando seus ideais e compromissos, suas metas e edificações, sua iluminação eterna. Aqui o tens voltado para o mar, provavelmente vez que outra, ainda fitando ao longe a ilha de onde veio. E não é pra menos, o coração pesa e chora, herdamos esta melancolia algoz de nossos colonizadores. Tu como mãe generosa cuidaste muito bem de teu filho, cultivaste sua memória e perdoaste seus pecados. Acho que estás correta, não deves julgar ninguém, apenas te repreendo numa coisa: erraste na medida da exaltação, do alarde de seus feitos, no enaltecer de suas qualidades. Não poupaste os inimigos nos esforços para defendê-lo, nem mesmo os adversários mais frágeis. Mas te desculpo, entendo tua tática, como mãe generosa, pensaste nos teus filhos e eles estão tão próximos, tão seguros ao porto que ainda vibra pelas ruas ventosas e arenosas dos dias sem brilho. Sabes que durante muitas décadas, a dinastia vai se perpetuar, mas que fazer, se não ceder aos desejos dos herdeiros, mesmo à sombra e parvalhice dos incautos? Afinal, tens o gozo dos irmãos e a vontade dos súditos. Foi nele que votaram nestes anos todos e ainda não acordaram que já havia morrido. Bem como planejaste, uma mãe lusitana, de coração aberto ao mar. Afinal, te consolas com a alegria florescente dos novos ricos, legatários messiânicos do senhor que se foi, mas que permanece tão forte e presente, quanto nunca. O tens presente no sangue que corre nas veias imponentes de sua mulher, filhos, sobrinhos, primos, irmãos, netos, cunhados, amigos, genros...Aqui mais uma vez apaziguaste a realidade com a mão carinhosa e matreira, estes três últimos não carregam seu sangue, mas persistem com seus dentes afiados nos pescoços herdeiros. Tal como D. João II, que planejou o caminho marítimo para as Índias, designando o pai, Estevão da Armada, para chefiar a expedição. Neste caso, o traçado não foi mantido, em vista de dificuldades políticas e eles, coitados, acabaram morrendo seu alcançar seu intento. Entretanto, suas idéias fizeram barulho ao sucessor D. Manuel I, para quem Vasco da Gama deveria chefiar a missão, mantendo o plano inicial do rei. Viste como és parecida, sabes de onde vens, qual é tua origem, tanto que cumpriste o plano do tio. Se é que havia algum projeto além de executar a incumbência de assegurar a sucessão, suceder o poder de geração ad eternum. E para isso, tinges as ruas de preto, configuras tua paisagem tornando-a semelhante a outros rincões, de aspecto e história tão diferentes e esqueces que mais longe, teus filhos menos ilustres chafurdam nas lamas de ruas que não existem. Fizeste doída a carreata de seu passamento, tão magistral e ornamentada que faltaram flores para velórios que tiveram a petulância de ocorrerem no mesmo dia. Houve quem se enterrou com flores de plástico. Mas segues atenta e prossegues na dinastia, tão urgente aos propostos de teus cidadãos. Talvez penses, tal como Dom João II, que esta terra se tornará um império. Tens coração tão grandioso que organizaste a vinda triunfal de teu filho ilustre na época, em que andava meio atordoado com denúncias para as quais pedia hábeas corpus. Certamente, sentimental que és, aconselhaste ao povo humilde, aquele que mastiga o solo nos dias de chuva, que atravessa as noites com filhos ranhentos em busca dos postos de saúde desaparelhados, dos que se finam nas mortalhas de pinus, debruçados em caixotes riscando os cotovelos magros e inchados na dor. Além de conselho, pediste com coração sufocado e lágrimas nos olhos, que esperassem o messias, organizando cartazes e faixas, alertando à mídia que amavam o soberano impoluto e que pediam, mais ainda, exigiam sua volta e proteção. Certamente naquele dia, um bando de matronas e siliconadas fizeram coro aos trapentos, esgueirando-se dos guris mal cheirosos que insistiam em investigar as bolsas reluzentes.
Não sei se um dia acordarás do sonho, afinal estás cada dia mais bem vestida e afastas pra longe os atributos defeituosos que te reduzem a um espelho no qual temes mirar. Não sei se perceberás que a tua beleza ainda é artificial. Não abrange tua estrutura. Afinal estás cada vez mais linda e mais impetuosa. A maquiagem te cega a inteligência e deforma tua alma. Não consegues olhar para os pés, desconfio que tens medo do que possas ver. De todo modo, tua cabeça está rodeada das belezas naturais que sempre te encantaram, fogosa e faceira que és como noiva do mar que te serve de margem e de leito. Da lagoa que te banha, do céu que envolve em pontilhados azuis, levando rápido os flocos claros que se agitam ao longe, fazendo às vezes de véu que te cobre e te ilumina. Estás ficando forte, sadia, quase capitalista. Tuas veias se mesclam em imagens simbólicas de avenidas que compactuam com tua beleza, assim enfeitadas, assim atrapalhadas e inadvertidas, mesmo que às vezes, as avenidas tem o aspecto de ruas e as ruas, o de avenidas. Mesmo que na tua entrada haja uma placa avisando as rajadas de ventos chegam a 100 km, por hora. Sei , sei que tu indicaste em virtude dos vôos que, embora raros, também enfeitam teus céus. Mas convenhamos, um turista desavisado se apavora com tua franqueza. Talvez faça o retorno e desapareça ao ver aquela sinalização, um tanto absurda, não achas?
Mas, mesmo assim, estás bela, o que me assusta são as estruturas que me parecem cada dia mais frágeis, toscas, oxidadas, capaz de não suportar tua beleza e força. Se não, observa a atenção precária que dás à saúde, a tua preocupação exígua com o bem estar social, com a juventude, com o saneamento, com a educação. Não te dilaceraram as carnes, quando destruíste uma escola? Será que como mãe protetora e afetuosa não encontrarias meios para evitar este descalabro? Quando todos lutam por escolas, quando temos escolas de lata no Estado, tu desistes de uma com toda a infra-estrutura e história de educação? Não seria viável chamar a comunidade, dialogar com a população, ouvir especialistas? Ou era mais fácil pra ti acabar de vez com o quisto que te incomodava. Não sei, mas sinto te dizer: teus pés estão ficando enormes e não há polaimas que possam aquecê-los, muito menos ocultá-los da parte bela de teu corpo. Estás te tornando um pavão, que evita olhar para as patas disformes. Acho até que teu novo caminho para as índias não está te conduzindo ao império, talvez ao poder, à dinastia, à sucessiva lista de sobrenomes idênticos, mas ao contrário, estás afundando no lodaçal mais poluído e impróprio para tua saúde. Teu povo pobre que servia à beleza de tua cabeça, está ficando cada vez mais longe, se aprofundando nas crateras em que enfias os pés. E aos poucos, estes pobres mirrados, famintos, que servem para alimentar teu ego, estão percebendo que teus pés são de barro. Quem sabe, acordas, não despreza de todo teu sangue lusitano, mas conspurca um pouquinho com a violência do espanhol, não adentra a Matriz a cavalo, nem surra teus inimigos, mas abre os olhos de modo ágil e austero, e aciona depressa tua justiça. Saibas que não és mãe apenas dos fortes, dos opressores, dos imperialistas, dos sucessores da dinastias, mas de seus súditos, seus opositores, o povo humilde que grassa nas ruas enfiados em casacos gentilmente cedidos pela primeira dama, ou os que ainda pensam na tua história e querem te valorizar no todo, não apenas na maquiagem, mas no teu interior. Acorda, cidade lusitana do sul, fundadora do Estado, a primeira entre as primeiras, não te compra com carnaval barato, com festas gratuitas de fim de ano ou com auxílios especiais em detrimento da verdadeira ajuda à sociedade: garantir a cidadania e o direito de ser cidadão sem baixar a cabeça. Um dia ainda, vais servir ao teu povo e teu povo te servirá. A melancolia além mar só vai lembrar teus ancestrais, mas no que te deixaram de belo, de poesia, de literatura, de obras de engenharia, de edificações, de artes, de humanidade. E dança com eles, dança o vira, o samba, o rock, dança a música de uma cidade democrática e cidadã. Esquece o bloco do toma lá da cá, porque és mãe de todos. Mas uma mãe moderna, não autocrática. Que tem os pés no chão e não são de barro. Aí, podes chorar, até olhar para as ilhas, para o céu, para a lagoa, para as vilas, para as ruas, para o povo. Sem donos.
Esta crônica sobre as mazelas de minha cidade, meio que me inspirei na maravilhosa música de Chico Buarque, Fado tropical, obviamente, excetuando a genialidade do autor. A seguir, a letra de Fado Tropical:
Oh, musa do meu fado
Oh, minha mãe gentil
Te deixo consternado
No primeiro abril
Mas não sê tão ingrata
Não esquece quem te amou
E em tua densa mata
Se perdeu e se encontrou
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal
"Sabe, no fundo eu sou um sentimental
Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dose
de lirismo...(além da
sífilis, é claro)*
Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em
torturar, esganar, trucidar
Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora..."
Com avencas na caatinga
Alecrins no canavial
Licores na moringa
Um vinho tropical
E a linda mulata
Com rendas do Alentejo
De quem numa bravata
Arrebato um beijo
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal
"Meu coração tem um sereno jeito
E as minhas mãos o golpe duro e presto
De tal maneira que, depois de feito
Desencontrado, eu mesmo me contesto
Se trago as mãos distantes do meu peito
É que há distância entre intenção e gesto
E se o meu coração nas mãos estreito
Me assombra a súbita impressão de incesto
Quando me encontro no calor da luta
Ostento a aguda empunhadora à proa
Mas o meu peito se desabotoa
E se a sentença se anuncia bruta
Mais que depressa a mão cega executa
Pois que senão o coração perdoa..."
Guitarras e sanfonas
Jasmins, coqueiros, fontes
Sardinhas, mandioca
Num suave azulejo
E o rio Amazonas
Que corre Trás-os-Montes
E numa pororoca
Deságua no Tejo
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um imenso Portugal
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal
Ainda vai tornar-se um império colonial
* trecho original, vetado pela censura
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