O mendigo

No enorme passeio de pedras encardidas, em frente à lanchonete onde o pai, a mãe e os dois filhos comiam, sacos pretos de lixo eram meticulosamente vasculhados por um jovem mendigo. Ele os abria com cuidado, seus dedos de unhas compridas e sujas desfazendo os nós sem pressa, o olhar perdido num ponto do passeio, indiferente às pessoas que passavam por ele sem notá-lo, às famílias, amigos e namorados sentados às mesas comendo sem vê-lo, como se ele fosse uma árvore, um banco ou um monte de merda.

Mas aquele pai olhava para o mendigo. Via como ele procurava, quase enfiando a cabeça dentro do saco, farejando, tateando; e quando encontrava alguma coisa, como examinava o achado, cheirava-o – geralmente um pedaço de sanduíche –, e depois levantava uma fatia do pão e olhava de perto o bife ou uma folha de alface suja de molho, embrulhando tudo num papel amassado, também tirado do lixo, certamente para comer depois, longe dali.

“Esse rapaz...”, pensava o pai. “Ele...”. Mas não concluiu o pensamento.

Com a vista já cansada pelas luzes ofuscantes da lanchonete, o pai tentava contornar as linhas opacas do corpo daquele jovem e destacá-lo do escuro iluminado da noite, do poste enfumaçado, do monte de lixo, do passeio encardido. Tentava percebê-lo como ser humano...

E o contorno se traçava, como um desenho feito por mãos invisíveis, os detalhes surgindo aos poucos: nariz aquilino, cabelos emplastrados de sujeira, braços longos e magros, roupa rasgada e manchada de tudo quanto é imundície...

“Mas e o ser? Quem é ele?”, o pai se perguntava.

Foi quando seus olhares se cruzaram e o pai viu um brilho nos olhos do mendigo. Foi muito rápido, mas ele viu... O brilho de uma tristeza viva, humana, cheia de passado e presente.

O jovem mendigo estava ali, presente: – Mateus, Rodrigo, Lucas, Geraldo, Ricardo, Jurandir ou qualquer outro nome. “Presente, professor”. Aquele olhar dizia isso. E dizia mais: “Ainda tenho sonhos”.

Sonhos, projetos... O pai via isso naquele jovem, no seu rosto cansado, no seu olhar de ovelha desgarrada, no jeito delicado com que ele desamassava o papel e embrulhava o pedaço de sanduíche, nas mãos habilidosas que procuravam, tateavam... Havia vida ali... Orgulho... Apesar da indiferença, do desprezo de todos, de tudo.

O pai notava naqueles gestos silenciosos, cheios de vontade, resquícios de um prazer em demonstrar habilidades e competências e questionar o despreparo dos outros. Aquele jovem também sabia se destacar em seu papel, como nós, não-mendigos (sobretudo os mais ambiciosos e cheios de si, que carregam na tinta de suas próprias qualidades com a mesma força com que destacam os defeitos dos outros, seus rivais).

Ao redor do pai e sua família as pessoas comiam. Uma jovem loira, muito bonita, sentou-se bem perto da mesa onde eles estavam, abriu um sanduíche e, com avidez, abocanhou um enorme pedaço. O pai brincava com os filhos, mas não tirava os olhos da moça, que comia como se nada mais existisse além daquele pão recheado com carne, queijo e molhos especiais.

“Há algo de obsceno no ato de comer”, pensava o pai.

E ele reparava as outras pessoas mastigando, engolindo e arrotando discretamente o gás dos refrigerantes. Uma mãe pegou o resto do sanduíche do filho e o enfiou na boca de uma vez, como uma porca. Uma criança comia batatas fritas como um gafanhoto faminto numa plantação qualquer, triturando os palitos amarelos encharcados de óleo com uma rapidez assustadora...

“Que horror, meu Deus... Que horror”, balbuciou o pai, balançando a cabeça como se negasse tudo ao redor, desolado, triste. “Será que é isso que somos?... Sacos de tripas ambulantes se enchendo, se empanturrando... Carcaças imundas?... Ninguém... Ninguém aqui é melhor que aquele mendigo”, pensou. E virou-se para vê-lo junto ao lixo, mas ele já tinha ido embora.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 25/05/2012
Código do texto: T3687381
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