BARRETO

Quando morei em Belém do Pará, lá pelos anos 88/89, conheci um sujeito curioso-não que ele gostasse de meter o nariz na vida alheia-mas pela maneira como colocava as coisas, sua ótica da vida e principalmente pelo seu modo de comerciante. Foi no bairro do Telégrafo(que eles chamavam de telégrafo sem fio) um local onde fora um assentamento para trabalhadores, no passado uma grande obra e que não se sabe ao certo se aquele terreno fora um aterro ou simplesmente porque a maré recuando, transformou-o em mangues e depois num aterro natural.

O bairro do Telégrafo era ou ainda é um local popular com muitas casas de madeira e a maioria das ruas sem asfalto. Eu morei em frente a “taverna” do Barreto, numa casa de tábuas muito bem arrumadas, erguida sobre palafitas cujo assoalho brilhava de tão encerada. Nesta casa,foram os meus primeiros dias em Belém ao lado de minha mulher a Ana Maria e minha filha. Apesar das dificuldades, nós enfrentamos a situação com otimismo e boas esperanças,mas não foi nada fácil aquilo. Sob nossos pés, as tábuas rangiam e havia uma bizarra e desagradável comunidade de ratos e aranhas de tamanho e feiuras consideráveis, cobras e provavelmente lagartos. Esses indesejáveis vizinhos costumavam nos visitar à noite,subindo pelas palafitas. A Ana ficava horrorizada. Mas, agente acaba se acostumando-coisas da Amazônia. Além do odor característico que subia da maré e meia dúzia de gatos vadios e brigões, a vida acontecia normalmente durante os dias mas à noite era uma uma festa. Uma estranha festa.

Como eu dizia, o Barreto era uma figura agradável, sorridente e amigo de todos, especialmente das crianças. Sua “taverna” era um barracão de madeira(sobre palafitas), sem janelas com uma porta de duas folhas que se abriam para a rua logo cedo para o café da manhã dos moradores e alívio para as donas de casa com poucos recursos financeiros. Ele costumava dizer: - Aqui ninguém sai sem levar alguma coisa. Meu negócio é vender, seja o que for, seja o quanto for. E era verdade. Nas minhas andanças por esse imenso Brasil, jamais vi algo semelhante. Se o Real existisse nessa época, e alguém tivesse apenas um Real, conseguiria comprar pão,margarina,café e açúcar e de brinde ainda ganhava um cigarrinho para fumar depois do café. O Barreto conseguia dimensionar as quantidades. Era vinte centavos disso, trinta daquilo,quarenta daquilo outro, a margarina por exemplo ele embrulhava num papelzinho de seda e tudo muito bem arrumadinho. O Caixa da taverna era uma caixa de papelão no chão ao lado de uma saco aberto de ração para cães. Mas bom mesmo, era ver o batalhão de crianças o dia inteiro comprando balinhas,doces,pipas,linhas e outros apetrechos infantis. Os meninos falavam todos ao mesmo tempo,alguns xingavam,outros gritavam e o Barreto pacientemente atendia a todos sempre brincando e jogando as moedas no seu ”caixa”ao que comentava comigo: “Aqui, todo mundo compra, todo mundo leva; e todo mundo é feliz-pensei. No horário do almoço, a cena se repetia, o roteiro também, mas os personagens eram outros. Entravam em cena as domésticas (algumas, o Barreto cantava)que iam e vinham afim de comprar os pertences da refeição. Seu Barreto - diziam: Me dê 50 centavos de arroz, um real de feijão, trinta de farinha, três “real” de carne seca, meia xícara de óleo, e o troco, me dê de cigarro “picado”. E tudo não passaria de cinco reais. Acreditam se quiser. E, quando alguma freguesa mais brava reclamava das medidas, o Barreto assentia com um sorriso de gelatina amarela e murmurava expressões locais usadas para espanto ou um desagravo: Égua! Ou então: É ralado!

O mais curioso nisso tudo era como ele conseguia se locomover estre tantas mercadorias colocadas desordenadamente e até mesmo de forma perigosa. Era um misto de feira, supermercado, boteco e ainda sobrava um cantinho na ponta do balcão para uma cachacinha ou uma “cerpa” gelada, sem contar com o tira gosto de mortadela que às vezes ele nem cobrava. A peça pendia junto ao portal ao lado de guarda-chuvas e vassouras, e era um alvo fácil de dentro do balcão para uma faca enorme que servia também para cortar fumo, sabão etc. Eu ficava pasmo de ver, aquele bazar surrealista, impossível de funcionar e no entanto, atendia ao Barreto sem nenhum constrangimento tanto para ele quanto para aos clientes. Eu passei a ser um deles.

Claro, que eu normalmente comprava as coisas pra minha casa nos supermercados, padarias e feiras mas,me divertia comprando na "taverna" do Barreto. Imaginem um cômodo de madeira de oito por quinze metros, um velho freezer que o barreto “não trocava por um novo” porque gelava demais-dizia. O espaço todo era apinhado de tudo quanto era de mercadoria possível: Um saco de feijão - aberto é claro, outro de arroz, mais outro de farinha, carne de charque,milho pra pipoca,fumo de corda, linha pra pesca,creolina e até fogos de artifício tudo comprimido e misturado mesmo, pendurados no teto ou espalhados pelo chão. Mas o Barreto sabia aonde encontrar os pedidos de olhos fechados, conseguia manipular tudo e ainda manter uma higiene improvável. Balança, não havia. Os pesos e medidas eram feitos à mão e ao olho do Barreto mas, sempre generosos. Uma coisa era certa: O Barreto não roubava (muito) porém,não vendia fiado. Dizia: - Fiado só é bom para perder o fregues!

Alem disso,o Barreto era uma pessoa aberta e gostava de estórias. Sabia coisas e segredos das cozinhas e quartos de dormir. Fazia considerações sobre política e políticos. Era discreto, um bom observador contudo. Era do tipo diferenciado do paraense. Branco, cabelos pretos,média estatura e um bigodinho à Carlitos. Uma figura. Ele gostava de citações célebres tipo: “Esta noite eu tive um sonho, um sonho de liberdade...” parafraseando Nelson Mandela, dizia ele. Outras,ele inventava e atribuía a personagens que ele também inventava.

Quando os meninos, lá chegavam nervosos e xingando as coisas, ele com um ar solene dizia: “saporra é a mulher do sapão!” Eu ria até...

Por Álvaro Francisco Frazão.