Thor em Pindorama

Domingo passado, dia 20 de maio, nos países escandinavos, os que cultuam a mitologia nórdica comemoram o dia de Mijölnir (pronuncia-se aproximadamente maiouner), o mágico e poderoso martelo do deus Thor, o colosso mitológico de cabelos e barba vermelhos, filho de Odin e Jord. Observem bem: comemoram o martelo, não o deus.

Alguns dos poucos que me leem já estarão, afoitos, se perguntando: Onde esse cara está querendo chegar com essa história de Thor e de Odin? Se ainda estivesse falando dos filhos de Tau e Kerana, deuses bem nossos, vai lá, mas falar desse tal maiouner a essa hora da madrugada!

Calma! Não se afobem. Vocês logo irão entender, quando perceberem o molho bem ácido com que vou temperar esse assunto.

Não se esqueçam que as civilizações do norte da Europa são muito avançadas, povo rico, culto, educado, sadio, alegre e muito respeitoso com relação as suas tradições. Enquanto nós, aqui, nestas terras tropicais...

Mas falemos de Thor, que tão bem sabia manejar seu Mijölnir para aniquilar o mal.

O prodigioso guerreiro, que quando distante de casa e esfaimado, para se alimentar, comia os bodes que tracionavam sua estrondosa carruagem, para em seguida ressuscitá-los usando o poder do seu martelo, morava em Thrudheimr, onde no grande salão de Bilskirnir, com seus mais de cinco centenas de aposentos, recebia com todas as honras os pobres. Mas depois de já estarem mortos.

Imaginemos agora que nossos deuses guaranis Ao Ao, Jaci-Jaterê, Kurupo, Luison, Mboi Tu’í, Moñai e Teju-Jagua convidassem seus anecês distantes, o colossal Thor e sua bela esposa Sif, para uma visita a nossa fantástica Pindorama. Enviariam um amanagé, que percorreria a pauá, do atlântico até o norte europeu, para formalizar o convite. E é claro que o acág-piranga aceitaria, honrado.

Dias depois, Jaci Jaterê, por motivos óbvios estaria recebendo o casal nórdico e sua filha Thrud. Com seu extraordinário apetite, Thor aprenderia logo a pronunciar mbiú e antes que abatesse Tanngrísnir e Tanngnjóstr (os bodes que viviam morrendo e ressuscitando), seria convidado a dividir uma farta mesa de aaru acompanhado da família. Depois dos comes e bebes Jaci-Jaterê os conduziria ao merecido codorno.

À noite, com a lua cheia banhando toda Pindorama, Sif e sua aiyra, Thrud, sairiam a passear ciceroneadas por Kerana, enquanto Thor, numa deferência especial à Luison e por ele assessorado iria receber os pobres, já mortos.

Com grande espanto veria chegar a comitiva dos abatidos pela polícia, no chamado “auto de resistência”. Não compreenderia bem o motivo de tantas perfurações por bala de arma de fogo (uma grande quantidade na cabeça e pelas costas). Mas a todos ofereceria seu largo sorriso escandinavo.

Depois chegaria uma caravana de mortos em desabamento de casas nos desmoronamentos de encostas. Era um grande grupo novos mortos, quase todos oriundos das cidades do Rio de Janeiro, Niterói, São Gonçalo e Angra dos Reis. Thor estranharia que os componentes desse grupo xingassem tanto alguns prefeitos e um governador. Mas, generoso, a todos consolaria.

Já aproximando-se a meia-noite chegaria um triste grupo de homens e mulheres, todos mortos sem que houvessem recebido assistência médica, em filas de hospitais ou na agonia da espera por um transplante de órgãos, salvador. Ficaria surpreso ao perceber que os visitantes, em sua maioria estendiam o xingamento aos prefeitos e governadores para ministros, secretários, senadores, deputados, vereadores, juízes, desembargadores e até, pasmem, para a mbururicha-açu cunhã-peba. O nórdico ficaria deveras impressionado com as palavras proferidas nos insultos, mas a todos confortaria com palavras suaves, impregnadas de pura generosidade.

Aram já estaria por surgir sobre o mar quando o lugar seria invadido por uma turminha barulhenta e alegre: as criancinhas mortas por catapora, sarampo, caxumba, barriga d’água, tifo, dengue, febre amarela, difteria, impaludismo, diarreia, verminoses diversas, poliomielite, leptospirose, bala perdida, bala dirigida, estupro, atropelamento, surra, cola de sapateiro, crack e, principalmente a mais tenebrosa de todas as coisas: a fome. Esses levariam Thor às lágrimas. A meninada para homenagear o ilustre visitante cantaria, em coro bem afinado, toda a indignação contida na canção de Renato Russo.

“Nas favelas e no senado

Sujeira prá todo lado

Ninguém respeita

A constituição

Mas todos acreditam

No futuro da nação...

Que país é esse?

...

Na Amazônia

E no Araguaia ia, ia

Na baixada fluminense

No Mato grosso

E nas Gerais

E no Nordeste tudo em paz

Na morte eu descanso

Mas o sangue anda solto

Manchando os papeis

Documentos fiéis

Ao descanso do patrão...

Que país é esse?

...

Terceiro mundo se for

Piada no exterior

Mas o Brasil vai ficar rico

Vamos faturar um milhão

Quando vendemos todas as almas

Dos nossos índios um leilão...

Que país é esse?

..."

Quando a gurizada tivesse saído, o deus nórdico apertaria com suas luvas de aço o curto cabo do seu Mijölnir e pediria à Moñai orientações sobre os pontos cardeais para que pudesse arremessar seu mágico martelo afim de abater os caris abaités. O deus dos campos abertos então lhe diria que a tarefa seria árdua, pois em Pindorama os caris-abaités eram muitos e se reproduziam como ratos nos grandes e mefíticos charcos da política.

PEQUENO GLOSSÁRIO DE VOCÁBULOS EM TUPI GUARANI

Ao Ao – Na mitologia Guarani é um dos sete filhos monstruosos de Tau e Kerana (é o deus das montanhas e dos montes).

Jaci Jaterê – Na mitologia Guarani também é um dos sete filhos monstruosos de Tau e Kerana (deus da sesta).

Kurupi – Na mitologia Guarani também é um dos sete filhos monstruosos de Tau e Kerana (é o deus da sexualidade e da fertilidade).

Luison – Na mitologia Guarani também é um dos sete filhos monstruosos de Tau e Kerana (é o deus da morte de de tudo que com ela se relaciona).

Mboi Tu’í – Na mitologia Guarani também é um dos sete filhos monstruosos de Tau e Kerana (é o deus dos cursos e água e dos seres aquáticos).

Moñai – Na mitologia Guarani também é um dos sete filhos monstruosos de Tau e Kerana (é o deus dos campos abertos).

Teju Jagua – Na mitologia Guarani também é um dos sete filhos monstruosos de Tau e Kerana (é o deus das cavernas e das frutas).

Tau – Na mitologia Guarani é um espírito do mau, que raptou Kerana e com ela teve sete filhos (os setes deuses monstruosos).

Kerana – Na mitologia Guarani é uma das filhas de Marangatu, um dos três filhos de Rupave – "pai dos povos" e Sypave – "mãe dos povos", as primeiras criações humanas de Tupã. É a mãe dos setes deuses monstruosos.

Pindorama – Em Tupi-Guarani, pindó-rama, significa terra das palmeiras (era o nome dado pelos índios dessa nação às terras por eles conhecidas, que hoje formam o Brasil).

Amanagé – Em Tupi-Guarani significa mensageiro.

Pauá – Em Tupi-Guarani significa grande distãncia.

Acág-piranga – Em Tupi-Guarani significa cabeça vermelha.

Mbiú – Em Tupi-Guarani significa comida.

Aaru – Em Tupi-Guarani significa um certo tipo de bolo feito com um tatu moqueado, triturado em pilão e misturado com farinha de mandioca.

Aiyra – Em Tupi-Guarani significa filha.

Mbururicha – Em Tupi-Guarani significa chefe.

Açu - Em Tupi-Guarani significa grande

Anecê – Em Tupi-Guarani significa parente.

Cunhã – Em Tupi-Guarani significa mulher.

Peba– Em Tupi-Guarani significa branca.

Aram – Em Tupi-Guarani significa sol.

Cari-abaité – Em Tupi-Guarani homem branco ruim.

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Luiz Vila Flor
Enviado por Luiz Vila Flor em 23/05/2012
Reeditado em 23/05/2012
Código do texto: T3684092