A fé nada mais é
Um homem tem seu filho atropelado. Permanece em estado de coma na ala rica do atendimento particular gozando de todos os benefícios da tecnologia. No pavilhão hospitalar dos pobres, logo em baixo, temos pelo menos noventa feridos em coma. Os familiares desses noventa indivíduos rezam pedindo a Deus a recuperação dos filhos queridos. Que mais resta? Ocorre então a fatalidade: os noventa populares morrem. Indiferentes as melífluas orações no pavilhão modesto. Sobrevive apenas o filho rico no pavilhão de cima. Acorda em plena esplêndida manhã de sol. Volta cantar a sua música de mau gosto. É uma alegria total. Rádios, jornais, televisões, trombetas, todos alardeiam a fé. “Quem tem fé, tem tudo!” vibra o pai repleto de alacridade. Confessa a mãe que "jamais perdera a fé" diante do verdadeiro milagre ocorrido.
Examinando o quadro exposto, diante da maioria subjugada pelos azares do destino, temos na ingenuidade a verdadeira guia da alegria. A fé nada mais é do que egoísmo elevado ao máximo da potência como cobertura de lirismo sobre o poeta sem poesia. A poesia nasce dessa fonte. É mecanismo empregado para quando nada mais existe de provável dentro das ações humanas. A fé e o milagre coroam seus entes queridos de modo independente. Pouco se dá sobre o destino da grande parcela massacrada. É espécie de adulação narcisista que dilacera o medo de tão grande espanto diante do vácuo das ações.
O homem evoluiu porque abandonou primariamente a espera do recurso divino, passando para o campo das ações. Tivesse se mantido na dependência química da fé a humanidade estaria vegetando no gel da escuridão pela ausência da técnica. Indiscutivelmente.
Depois é preciso depor contra esse egoísmo legitimado popularmente em sua cegueira sem precedentes. A fé só pode ocorrer subjetivamente mesmo tendo como único caminho o delírio coletivo. É independente de qualquer gênero ritual. Uma mente aberta ao mundo reflexivo possui convicções acima de qualquer fé de ordem mágica e fabulosa. Compreende tais sinais quando a solução consiste em apenas aguardar os fatos assobiando um tango argentino.
É a fé o contrário da liberdade pela experiência, pois assume um papel de respeito hierárquico que segue da escravidão total até a liberdade vigiada.
As pessoas então acreditam que a subjugação total da própria subjetividade representa (sempre aos demais) a clareza de princípios sobre aquilo que ninguém conhece, nem nunca conhecerá. A fé é o desenho primitivo sobre o desconhecido revelado pelo sentido mágico. É o egoísmo mágico. Egoísmo no sentido de se manter altamente necessário para alívio das situações limite como uma pedra que se abrisse sozinha diante de um pedido de perdão. É acomodação cultural devido à incapacidade para variante considerada lucrativa na experimentação, pois se a fé remove montanhas os soterrados não precisariam de ajuda.
Todos os demais pacientes da unidade de tratamento intensivo em coma foram levados à morte indiferente dos pais cheios de orações, restando-lhes o contexto da fé de baixo teor. Somente um felizardo teve seu filho de volta do coma para o grande espetáculo alienado da idolatria. Deus deve dizer o seguinte: prefiro canções caipiras.
No fundo apenas me oponho ao show dos fatos.
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Qualquer virtual semelhança com a vida real é mera coincidência.