Morte Lenta
MORTE LENTA
(Renan Flores)
Às vezes, quando vou pra faculdade, fico olhando para o alto do prédio, imaginando qual seria a distância do topo até o chão. Como seria a força do vento lá em cima? Quais os sons e os cheiros, a temperatura, a vista?
Certa vez eu subi, subi até o topo do prédio. Não fui de elevador, nem usei a escada interna; fui pela saída de emergência, que é do lado externo do edifício. Cada degrau era um passo mais longe da segurança do solo. Cada centímetro pra cima era um centímetro mais perto de Deus. Eu subia devagar, aproveitava cada passo. Não usei o corrimão, e se fosse possível não usava nem os degraus. Era uma nova sensação de liberdade e aventura aflorando dentro de mim. Certo, vou parar com essa carochinha de alpinista. A verdade é que eu estava interessado em saber se caso uma pessoa caísse lá de cima morreria na hora ou se havia alguma probabilidade de que ela sobrevivesse. O único jeito de saber era subindo e me esgueirando no parapeito até meu coração disparar e minhas pernas ficarem bambas.
A pessoa em questão era eu. Não vou dar muitas explicações: estou de saco cheio de viver. Ponto. Pois então, continuei subindo, subindo. Cada lance de degraus tornava as pessoas lá embaixo menores. Ninguém me dava especial atenção, já que muitos alunos usam a saída de emergência para fumar maconha. Pra minha sorte ainda não era horário de aula.
No meio da subida eu parei e resolvi olhar para baixo. Era uma bela de uma queda. Trinta metros, eu acho. Alguém que caísse dali com certeza não ia gostar da experiência. Continuei. Subi, subi, subi. Quinto andar. Sexto andar. Sétimo andar, finalmente. Sou um gordão e cheguei exausto ao topo, suando como um porco. Recuperei o fôlego, sentado num dos degraus. Olhei para longe. Esperava ver pássaros voando, nuvens sob o céu azulado. Na real, o que eu realmente queria era estar acima das nuvens para contemplá-las lá de cima. Mas tudo o que eu vi foram prédios ainda mais altos que os da faculdade tapando a minha visão. Ruas entulhadas de carros rabugentos e barulhentos. Pessoas andando pra lá e pra cá, vivendo suas vidas imbecis, preocupadas com a balada de sexta à noite. Decepção. Tudo bem, aprendi que elas fazem parte de mim e isso não se pode mudar. Se Deus não mo queria, que o Diabo me acolhesse. Encostei no parapeito e olhei pra baixo, esperando ver uma grande cratera rugindo fogo e enxofre, com um humanoide horrendo no centro me encarando. Só havia o concreto. Nele estava desenhado um grande labirinto circular, capricho do paisagista contratado pela faculdade. Tentei caminhar por ele com os olhos, mas eu sempre me perdia e não conseguia fugir. Esse labirinto reflete a minha vida.
Sétimo andar, uns cinquenta metros de altura. O vento batia forte contra meu corpo e trazia sons de trânsito e sirenes de toda a cidade. Nenhum pássaro. O ar era diferente, mas ao mesmo tempo o mesmo. Fazia mais frio do que lá embaixo, mas ainda assim não o bastante pra me confortar. Subi com vontade de me matar. Olhei pra baixo. Perdi a vontade.
...
Fazia calor. Era umas quinze pra sete da noite e eu estava numa lotação, rumo ao Metrô. Comparada com o dia, a noite estava fresca, até fria. Foi o que eu ouvi um dos passageiros comentando com outro. Pra mim aquilo era calor. O que me era o dia então? Um Inferno tropical de raios solares, ar estagnado, mormaço e gente suada se esfregando dentro de vagões de trem tão apertados que sequer podemos nos mexer. O brasileiro gosta disso, não espera por uma oportunidade de se atracar em outros corpos humanos (vide o carnaval, os jogos de futebol, a baladinha de sexta à noite, etc). Eu não gosto. Talvez eu não seja brasileiro mesmo. É uma pena, eu gosto muito desse país. Me sinto mais inclinado a pensar que não sou gente, e sim um bicho. No mundo inteiro as pessoas gostam de outras pessoas (não do jeito libertino do brasileiro, lógico), de afeto, de amizade, carinho e toda essa merda. Enfim, gostam de ter uma rede de pessoas por perto. Eu não gosto. Uma vez ou outra me dá uma crise de carência, herança da minha metade humano dada por minha mãe. Mas o lado bicho sempre vence. O lado bicho é mais forte. Ele gosta de solidão, ler, ouvir música, comer e dormir. Eu não sou humano, sou um bicho. Um porco pra ser mais preciso.
Estava entregue a estes pensamentos quando a lotação atingiu seu destino. Desci e andei em direção à escada rolante que subia. A uns quinze metros dela, avistei uma multidão vindo no sentido oposto ao meu, descendo pelas escadas opostas. Dezenas e dezenas de pessoas amontoadas umas sobre as outras, seu suor servindo de argamassa. Uns corriam como loucos, tentando garantir um lugar sentado na condução de volta pra casa (ou um lugar perto da porta de saída: o brasileiro adora se amontoar nessa região do ônibus igual mosca em cima da bosta). Os pobres idosos, que não podiam correr, que se matassem por uma vaga nos assentos reservados ou esperassem o próximo. E mais e mais gente descia pela fila como uma grande massa de carne moída. “We don’t need no education / We don’t need no though control”: a serpent de metal acabara de parir seus odiosos filhos. Pelo cu.
Lutando contra a correnteza humano, subia o porco, isto é, eu. Com uma incrível habilidade de calcular dezenas de corpos em movimento e desviar, consegui chegar à catraca em segurança. “Vencemos!”. Gostaria que meu nome fosse Maratona e que eu pudesse cair morto. O leitor, se chegou até aqui, deve estar enojado com o que venho escrevendo até aqui, sobretudo o jeito com que me refiro ao brasileiro. Engana-se aquele que me tem por xenófobo, preconceituoso ou racista. Me referiria assim ao brasileiro, ao argentino, ao peruano, mexicano, norte-americano, alemão e qualquer outro raio de nação que existir. Não é nenhuma licença poética nem um escárnio barato: é assim que eu os enxergo. Sofro de um grave problema com multidão. Entro em pânico quando vejo dezenas de pessoas andando pra lá e pra cá com suas perninhas e bracinhos balançando pra lá e pra cá dim di lim di lim di lim. Algumas pessoas têm medo de barata. Outras de aranha. Outras de palhaço. Eu tenho medo de gente.
Não é brincadeira. Eu realmente queria tombar morto ali, me chamando ou não Maratona. Mas estava bem, infelizmente, e tive de continuar. Procurei um lugar na plataforma de embarque o mais longe possível da multidão, um canto só pra mim. Observei as pessoas desembarcando no trem que chegava à outra plataforma. Desembarque é uma analogia; elas simplesmente escorreram pra foram do trem quando as portas se abriram. Desviei o olhar e dei de cara com a linha do trem. As pessoas saíam e eu mantinha os olhos fixos nas duas barras paralelas de metal. Imaginei se eu não podia me jogar ali e esperar que o trem arrancasse minha cabeça. Seria muito bom. Morte instantânea. Sem dor, sem sofrimento. Na boa, não gosto de pensar na morte como morte. Prefiro pensar nela como dormir. Um sono do qual jamais se pode acordar de novo. Criei várias imagens em minha cabeça. O horror dos usuários, a irritação dos funcionários, a manchete do jornal, os choros de minha mãe. Era tudo tão divertido que me senti realmente inclinado a tentar. Por que não? Daquelas duas barras de metal emanava uma voz doce e delicada chamando por mim. Eu queria segui-la, queria ouvir aquela voz por toda a eternidade. Cheguei mais próximo da borda, cruzei a faixa amarela...
AAAAAAARRRRRRRRRGHHHHHHHHH!!!! Um clamor metálico me acordara do encanto e eu pulei pra trás, quase tropeçando em meus próprios pés. Algumas pessoas me censuravam com o olhar. O operador do trem saiu da cabine de comando e me olhou feio. Poucos segundos depois soou a advertência: “A faixa amarela é a sua segurança. Evite arriscar sua vida”. Fui acordado do sonho no último instante. Jamais perdoarei aquele maquinista. Depois daquele dia, nunca mais tive coragem de chegar tão perto.
Renan Flores,
Vinte e um de maio de dois mil e doze.