gangorra existencial
E foi assim que eu me encontrei, sentada, fazendo uma gangorra com os pés, que nem mesmo chegavam ao chão. O peso da minha existência bambuiava para frente e para trás com uma leveza que só se mostra nas tardes abandonadas de domingo. E, no cheiro de café que dançava no ar, o perfume do bolo de cenoura quentinho com um risco sutil de manteiga, diretamente da época em que a cadeira era alta demais para eu sequer pensar em subir sozinha e arriscar um vai e vém com os pés. Diretamente do tempo em que eu punha meus dedos pequenos na beira da janela e levantava os pés, ansiosa para enxergar o mundo com a beiradinha dos olhos.
E cá estou, não só crescida o bastante para ver o que havia do outro lado da janela, sem esforço, mas estrelando a gangorra turbulenta que existe do lado de fora, e que chamamos de mundo. E eu abro os olhos todos os dias, pela manhã, vendo os grãos de poeira junto aos tímidos raios de sol, pairando pelas frestas da janela, em direção ao meu rosto. E a criança que existe em mim pede com a força de uma oração que aquilo seja poeira cósmica, das estrelas fluorescentes pregadas no teto do quarto e que, naquele dia, decidiram se tornar reais. E pede ainda que, ao chegar da janela, a vontade de ir explorar o outro lado seja tão urgente como foi um dia, e que não se transforme em medo ou vontade de voltar para detrás da janela e correr um único risco, que é o de cair da ponta dos pés, da altura de alguns centímetros poucos. A criança que existe em mim pede, ainda, quase gritando, que os lábios alheios achem graça das besteiras que saltarem da minha boca de gente grande, que emoldurem sorrisos sinceros toda vez que eu trocar o r pelo l ou pronunciar uma palavra pela metade, que me peguem no colo quando o caminhar com as minhas próprias pernas me cansar um pouco, que gargalhem com o meu jeito de correr desengonçado, típico de quem ainda está aprendendo a andar, e que batem palma e vibrem quando eu aprender a cantar uma música nova ou fizer um desenho novo e ir correndo mostrar.
A criança que habita em mim sabe que a vida é como uma borboleta, que se transforma e acaba, às vezes, cedo demais, mas que possui doçura, quando se é livre, de alma. E às vezes sinto como se tivesse me casado com a vida. Como se eu fosse herdeira do alecrim dourado que minha mãe cantava ao pé do meu ouvido, dos desenhos de sábado de manhã, das tanajuras caindo do céu e de perfumes que me remetem a lembranças nem sempre nítidas. Como se fôssemos íntimas o bastante para que eu a aceitasse áspera e ela me aceitasse de mau humor. Para que soubéssemos da confiança que é esperar sem resmungos doentios. Esperar a hora certa, esperar o brilho nos olhos, esperar o colo levado para longe... Esperar. E para que tivéssemos a liberdade de nos manter em silêncio quando quiséssemos, a liberdade de gritar, espernear, nos afastar, nos presentear, quando quiséssemos.
Minha infância de criança sozinha criou em mim diálogos com as formas mais inesperadas de vida. Tudo o que faz o menor ruído, me chama. Tudo o que existe, surpreendentemente, me fascina. Tudo o que tem um coração, me tem também. Cresci. E cresci inteira. Curvas humanas já não me cabem na alma. Podem me destroçar toda que eu renasço. Podem me rasgar inteira que eu me renovo. E se alguém se atrever a dizer que o outro lado da janela não é para a minha altura, eu me atrevo a subir na cadeira e pular, a saltar lá de cima de uma das gangorreadas, a voar, mas eu vou, eu sigo. Ah! eu sigo. Pois só desisto quando a inevitável das mortes chegar. E só morro no fim.