Síntese de Um Dia Mais ou Menos [2]

Ao me aperceber das pessoas que iam chegando, fui me sentindo na necessidade de um cigarro. E eu não - não, definitivamente não - sou o fã número um do maldito rolinho de câncer. Fui sentindo aquela vontade familiar de desaparecer; aquela deliciosa sensação de ter abandonado algo maravilhoso e promissor. Com pânico, peguei o celular e mandei uma mensagem à Nasrina:

- Caralho, chega logo! Toco vergonha e quero ir embora hahaha.

Não estava com vontade de ouvir música, mas mantinha os fones no ouvido, como o melhor repelente social já inventado que ele o é. Assim, pesquei uma conversa e outra, enquanto avaliava as mulheres que chegavam. Pude ouvir que um dos rapazes era formado em Letras pela USP e que trabalhava no maior conglomerado bancário da América Latina. "Legal", pensei, já cogitando ir embora de uma vez.

Então, a filósofa escritora renomada que ministraria a tal da oficina de escrita criativa chega, saltando de um táxi. Com aquela graça mística que as pessoas bem-sucedidas e que ainda andam de metrô por uma questão ecológico-ambiental têm, ela sobe as escadas sorrindo a um ou outro.

Fico trocando mensagens com a amiga skatista até a hora que somos todos convidados a subir à sala onde acontecerá a palhaçada. Subi a escada me perguntando se isso me traria algum benefício. Me senti ridículo por estar indo ao encontro de algo que poderia deturpar a minha escrita, tão naturalmente desprovida de badulaques estéticos ou influências forçosas.

Bom, formamos todos uma espécie de círculo com as cadeiras, com a ilustre pessoa dona de vasto conhecimento na área ao centro. Nasrina chega, esbaforida, e consegue um lugar razoável, após pegar a última cadeira.

A pessoa começa se apresentando e, para minha infelicidade-mor, pede que todos façam o mesmo. Tipo em entrevista de emprego.

- Para não consumir muito tempo, como ele é bem curto, falem nome e sobrenome, idade, o que fazem da vida, o que costumam ler e qual é a intenção de vocês ao virem até aqui.

E sorri. E cruza as pernas.

A primeira pessoa a falar tem sete anos a menos do que eu e está no segundo ano de Letras na USP.

A segunda é Jornalista, assessora de imprensa da cidade de onde veio. Diz que a intenção dela é se livrar dos termos técnicos, dos engodos jornalísticos, e que pretende, no futuro, lançar um livro.

A terceira pessoa é formada em qualquer coisa que não entendi. Diz que costuma ler Augusto Cury.

- Ah - diz a filósofa, professora de uma das faculdades mais caras de São Paulo - Mas nós vamos fazer de tudo pra te curar. Vai sair daqui querendo queimar essas porcarias.

Todos riem. De imediato me simpatizo com sua sinceridade, assim como me simpatizei com suas panturrilhas.

- É sério, gente! Esses livros são um insulto à nossa inteligência!

O que eu sempre digo.

Aí vêm outras duas também estudantes de Letras. E um cidadão que se diz músico.

Sou o próximo, depois dele. A essa altura do campeonato já rebusquei mentalmente os últimos livros que li, as porcarias que faço na vida e o que pretendo com a minha presença ali, num lugar pra pessoas travadas, enfrentando algum tipo de dificuldade em escrever.

Eu vou enchendo a pança d'água pra disfarçar o pânico de falar em público.

Vou cruzando as pernas. Olhando o teto. O cara que me precede não para de falar, numa demonstração maçante de intelectualidade pedante.

Chega a minha vez. Digo meu nome, idade, e digo que mais ou menos faço faculdade de Fotografia.

- "Mais ou menos" porque abandonei aquela merda lá, pra variar.

Acontece qualquer coisa com alguma coisa que eu falo e todo mundo perde o foco falando ao mesmo tempo e eu acabo me livrando de ter que falar mais.

Tem esse cara que está do meu lado. Ele falará assim que a celeuma cessar. Depois de mim. E tal. Aqui, entre esses dois rapazes, sinto um cheiro de cueca usada. Aquele cheiro de bunda suja.

Esse cara fala qualquer coisa que eu esqueço no segundo subseqüente.

O outro tem três anos a mais do que eu e está no primeiro semestre de qualquer coisa. E diz que dá aulas no Ensino Médio, mas que irá abandonar a carreira.

Depois vem a Nasrina. Que fala bem demais pra circunstâncias dadas.

Quer dizer, pensei que ela teria o mesmo problema que eu em falar em público.

As pessoas vão falando e falando e falando, até que chega o bancário formado em Letras, que já tentou dar aula e não deu certo e que acabou descambando pro mundo dos negócios - ou coisa que o valha.

Ele começa com nome, idade, formação, trabalho. De repente, ao dizer que anda lendo muito Nietzsche, que os quatro últimos livros que leu foram do alemão, começa um surto catártico de amargor e desespero que me deixou excitadíssimo.

- Estou numa fase muito difícil da minha vida! Ninguém me nota, nada parece valer o esforço, tá tudo muito ruim eu estou desesperado já fiz terapia já abandonei porque não estava adiantando e...

E ele vai falando e falando e falando e o canto esquerdo de sua boca vai subindo, como se ele quisesse falar pra própria orelha, ou como se estivesse beirando um derrame.

"Esse é o tipo de pessoa que se joga na frente do Metrô", pensei, animado.

"Caralho, qual é o meu problema com essa morbidez?", pensei em seguida.

O cara é interrompido no meio de seu acesso de carência com uma promessa de que os escritos dele, dali em diante, poderão amainar aquela desgraça, soprar a nuvem negra pra longe, chutar a depressão no meio do cu, enfim.

O rapaz seguinte cita que o interesse dele é em aprimorar seus contos doentios. Simpatizo com ele. De longe, a segunda pessoa mais interessante dentre os presentes.

Um publicitário.

Uma publicitária.

Uma professora idealista e fodida da vida.

Pessoas com problemas de criatividade. Pessoas que vivem situações que gostariam de botar no papel e não conseguem. Buscando ajuda. "Não, gente", eu penso, "tá tudo errado". Não olho meu próprio rabinho e vou seguindo com meus preceitos imediatistas e instantâneos.

A filósofa diz que as famílias perturbadas que temos são o nosso ouro.

Nasrina e eu trocamos aquele olhar de cumplicidade.

Fico boiando enquanto algumas outras pessoas vão falando. Fico olhando as panturrilhas e as coxas e o batom vermelho exagerado na boca de uma adolescente que estava ali por querer arranjar um jeito de parar de escrever coisas somente para sua gaveta.

Aí chega essa senhora de sessenta e nove anos de idade, que acorda às cinco da manhã pra ir pra academia. Arruma a casa. Cuida do salão de costura que tem. Cuida dos netos. Rega o jardim. Faz a comida. Lê e escreve poemas.

E eu fico pensando em mim mesmo, com meus vinte e cinco, com toda a disposição do mundo pra rolar pro lado e morrer dia após dia.

Depois dela há uma dessas roqueirinhas. Ela diz que cursa filosofia e que está odiando o curso. Fala com um léxico requintado, diz coisas bonitas, poeticamente bem encaixadas, todas pendendo pro lado pessimista da força. Estava até curtindo o dramalhão. Foi quando saiu um "eu sofro de genialidade incompreendida" daquela boca que eu me pendurei no meu galho existencial e morri de preguiça.

E então, começou a tal da oficina. Um desfile de analogias, de alusões, de nomes ininteligíveis de grandes pensadores que não influenciaram em nada a minha vida e etc.

Eu fico mesmerizado na fluência com que as palavras saem da boca da dona doutora; com a coesão dela; com a boca dela; com as pernas dela; fico estupefato com a capacidade de ter uma resposta na ponta da língua para cada interrupção imbecilóide de um dos dois que estão ao meu lado - cara, que mulher!

A tarde foi transcorrendo com a minha bexiga cheia. Fui me dando conta de que o tipo de literatura que produzo é especialmente nociva e necessária, apesar de ser totalmente fadada ao ostracismo e ao nada. Ao desconhecimento pleno e ao dar de ombros da maioria esmagadoríssima das pessoas. Mas, tudo bem.

Quando tudo acabou, saímos de lá, Nasrina e eu, vomitando arco-íris acerca da inteligência da nossa querida "professora". Pegamos ônibus e trem em direção à Paulista, conversando uma coisa (desgraças) ou outra (fracasso desmedido) e preservando o silêncio agradável que nos apetece. Chegando na Consolação, ela tomou o rumo dela e eu tomei o meu.

Fiquei na região das catracas, esperando e passeando com o olhar. Então, ela chega.

- Desculpa!

- Pelo quê?

- Pelo atraso.

Olho o relógio da estação.

- Mas você foi pontual.

- Ah, sei lá...

- Shiu, caralho! Vamos lá comer antes que eu comece com meu azedume.

Paramos diante de um balcão conhecido, e pedimos a mesma batata assada recheada de sempre. Escolhemos uma mesa ao lado de dois rapazes transões e ficamos esperando o pedido.

- Nem fui lá hoje - ela diz.

- Onde? - Pergunto.

- No atendimento...

- Ah, tá certo! Todo sábado a piranha da sua paciente falta. Nada mais justo.

- NÉ? Nossa, dormi o dia inteiro.

- Que inveja.

Meus olhos ardiam. Os rapazes da mesa ao lado falavam qualquer coisa sobre "pegar várias minas".

- Ó, nossa senha!

Pegamos as bandejas e voltamos à mesa.

A minha batata veio peculiarmente sem o brócolis prometido. Fiquei rosnando e comendo.

- É sempre assim: você vai a algum lugar que desconhece, se esbalda, gosta, fala bem, e quando volta, te servem merda!

Os rapazes ao lado falavam de carros e festas e dinheiro.

Acabaram com suas comidas e deixaram as bandejas na mesa, numa verdadeira espécie de maquete de chiqueiro.

Acabamos com as batatas, dispensamos nossos dejetos de acordo com a lata de lixo - papel, orgânico, plástico, lata (ah, os bons cidadãos!) - e fomos ao banheiro escovar os dentes.

Uma vez lá dentro, dois rapazes, funcionários de uma churrascaria, entraram fazendo alarde, cantando funk e perturbando a paz. Lembrei da ascensão do Hitler, sei lá por quê.

Saímos do shopping e descemos a Augusta matraqueando e desviando de pedintes chatos. Atravessamos os barzinhos descoladíssimos da Praça Roosevelt e caímos na Rêgo Freitas.

Estávamos procurando o teatro onde seria encenada a peça de uma amiga das antigas - entre bares suspeitos, cheios de putas, travestis e fumaça de cigarros - quando alguém me reconhece e me chama.

- Você não é o...

- Sim, sou! - respondo.

- Porra, eu lembro de você!

- Ah, eu também.

Desligo. Não faço as apresentações. Ficamos esperando alguma coisa acontecer.

- Vamos entrar? - Pergunto.

- Tudo bem. - Ela diz.

Entramos. Paramos no balcão do bar e pedimos duas doses de conhaque. Encontramos uma mesa, brindamos e ficamos nos olhando, naquela dupla mútua contemplação boba de quem não tem o que dizer.

- Bonito esse lugar, né?

- Demais! E aqueles quadros?

- Gostei daquele ali. - Digo, apontando um desenho de uma mulher nua numa cama, de pernas abertas, parindo um ovo com a casca trincada, de onde saiam uns braços.

O irmão da minha amiga atriz - o que me reconheceu na rua - se junta a nós na mesa, dizendo que não conhece ninguém ali.

A gente vai botando a pouca conversa em dia: faculdade, trabalho, dissabores existenciais e demais coisas. Apesar de esse tipo de situação me deixar pouco à vontade, me sinto bem. O conhaque acaba.

- Quer outra dose? - Ela pergunta.

- Aham. Você pega lá?

- Pego sim.

Ela levanta e faz o contorno nas mesas, a caminho do bar. Fico olhando sua bunda. Sorrio.

- Bonita sua namorada, hein? - Diz o rapaz.

- Porra, também acho.

- Bonitona mesmo...

Ao longe, os copos são cheios com bem mais conhaque do que as doses que eu havia pedido. Mulheres...

Assim que ela se senta à mesa com os copos, uma voz anuncia que a peça irá começar. Que todos devem se dirigir ao lugar que fica o palco e etc.

- Caralho! E agora? Será que pode levar o copo.

"Não é permitida a entrada com bebida e...".

Trocamos olhares. Os três.

Na fila pra entrar, emborcamos longos e servidos goles, intercalando os copos.

Sentamos na penúltima fila, bem alto, e quando as cortinas se abriram, eu já me sentia deslocado do meu corpo. Eu flutuava. Eu tinha todos os meus reflexos residindo na possibilidade de um travesseiro macio e um cobertor quente depois de uma transa bem-feitinha.

A história ia toda se desenrolando e eu não conseguia fiar uma frase à outra. Acabei desistindo de tentar entender e fiquei me concentrando nos quadris das atrizes.

- Dormiu? - Pergunta ela, segurando minha mão e me olhando, sorrindo, terna.

- Quase lá.

Lá pelo terceiro ato consegui recobrar minha capacidade analítica e fiquei apreciando o espetáculo, todo cheio do orgulho da minha amiga Vans e também de seu namorado.

Quando a peça acabou, ficamos na entrada do lugar, esperando a Vans para dar os cumprimentos e cair fora. Do outro lado da rua, uma puta negra e gorda dançava forró sozinha e começou a subir o vestido quando reparou que eu estava olhando. Fiquei com vontade de beber cerveja e fumar maconha na varanda do apartamentozinho que tinha acima do boteco risca-faca...

- Aquele prédio ali é o COPAN, né? Aquele redondinho?

- Não, aquele é o... Esqueci o nome.

Ficamos discutindo sobre qual era qual. Citei que durante uma expedição fotográfica solitária pelo Centro, anos atrás, eu havia ralado os joelhos e os cotovelos ao ficar estendido na calçada em frente ao COPAN pra enquadrar uma árvore sem folhas em primeiro plano, com ele de fundo e a Lua cheia bem acima.

- Até aí tudo bem - falei - o mais engraçado foi que quando fui olhar a foto, dei zoom perto da Lua e tinha uma nuvem meio esquisita. Aí eu olhei pro céu e adivinha? Não tinha nuvem alguma lá. E quando dei zoom em cima da nuvem, quase caí duro: era a silhueta de duas pessoas, no ângulo perfeito de um suposto suicídio.

Vans saiu com um sorriso enorme.

- Aaaaai, que bom que você veio!

- Eu falei que vinha!

- É, mas nas outras cinco vezes você também falou!

- É verdade.

Apresentei as garotas.

- Em junho vou estrear outra.

- Colarei.

- E em julho outra.

- Estarei aqui.

Os outros atores saíram e fizemos uma rodinha simpática e sorridente de desconhecidos. A atriz mais gostosinha ficou me olhando esquisito e eu fingi que não percebi. Despedimo-nos todos e eu tomei meu rumo com minha garota, andando devagar, apreciando as luzes dos faróis e o fedor da Praça da República.

Chegamos em casa sem muitos incidentes.

No meio da madrugada, acordei com a gata mordendo meu queixo. Percebi que estava apertadíssimo e, ao ir ao banheiro, percebi que estava com a embriaguez que não tinha me atingido no teatro: raspei a perna na quina da cama, meti o ombro no batente da porta e dedinho do pé na quina do pé do sofá. Botei o bicho pra fora e fiquei zonzo enquanto a urina saía. Lavei as mãos, o rosto, escovei os dentes com o dedo indicador e voltei pro quarto. Acendi a luz. As gatas dormiam enroladas em cima do monte de cobertores que estavam acima de uma bonita bunda.

Sorri, apaguei a luz, apaguei a música dos Hare Krishnas da playlist do computador e me espichei pra debaixo do tal monte de cobertores. Adormeci poucos segundos depois.

21/05/2012 – 02h08m

*Foto do COPAN: http://twitpic.com/9njpyk (não tem ctrl+c, vai ter que digitar, amigo).

Baron - Swagger Rich

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 21/05/2012
Reeditado em 21/05/2012
Código do texto: T3679148
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