= "O PONTO" =
“ O PONTO...”
Em 20 de julho de 2011
Ronaldo Trigueiros Lima
= A memória de Fernando da Mota Trigueiros, meu tio. =
Não era somente o nervosismo que se apossara do elenco antes que a cortina se abrisse. Não era somente aquele “frio na barriga” tão comum, principalmente em estréias. O diferente é que havia no “ar” uma insegurança inconcebível.
Afinal tantos dias de ensaios, - dois meses redondos para ser exato-, deveriam ser mais do que suficientes para que todo o grupo se sentisse inteiramente a vontade, (apesar de todas as “merdas”proferidas como saudação de “boa sorte”, como já é de costume entre artistas cênicos), mas nem mesmo isso espantava o pânico que havia envolvido todo o elenco.
Mas por que tanto “estremiliques”? Por que a “prima dona” estaria tão estérica, esbravejando farpas ameaçadoras aos “quatro ventos”negando-se a entrar em cena como uma mula que empaca - caso não fosse resolvido o impasse que garantiria a presença do “Seu Fernando”, o ponto. Na verdade esse SER sublime era a própria âncora do espetáculo. Não era uma pessoa qualquer. Era o único ser de fala mansa, pausada e nítida, capaz de oferecer uma segurança necessária as estrelas, ajudando-as na interpretação do texto. Para a “prima dona”, Seu Fernando era fundamental, e sempre fora condição principal, em seu ponto de vista, quando qualquer grupo se interessasse por ela para protagonizar alguma peça.
Na verdade Seu Fernando, com sua voz pausada, “silabicamente sussurrada”, oferecia total segurança aos atores. De forma geral, garantia a fidelidade não só do texto, mas, principalmente o sucesso do espetáculo .
_ Fique calma querida – disse o diretor forjando uma fala mansa - imediatamente repelida pela “prima dona” a beira de um pranto estérico:
- Não vou decepcionar meu publico de jeito maneira... Só entro em cena com Seu Fernando dentro da caixa do ponto. Não sei se você se lembra, mas essa sempre foi a condição para que aqui eu estivesse. E sempre procurei deixar bem claro essa exigência! Para mim e para o elenco o senhor Fernando é insubstituível!
- ... E o que eu devo fazer, já que o público se impacienta? Retruca o diretor visivelmente alterado!
- Mexa-se ! Tome providências! Procure saber o que aconteceu e mande buscá-lo! Como já disse: Seu Fernando é insubstituível... E se está atrasado, (coisa rara em nossa convivência profissional ), deve ter algum motivo e duras razões... - - Por favor, encontre-o... Pode ser que esteja preso no trânsito, ou alguma coisa relacionada a isso, pois todos sabem que os “engarrafamentos”são comuns na cidade, e de maneira geral o trânsito tem estado terrível! A confusão é tanta entre os ônibus, que além de não respeitarem o horário, não param nos pontos determinados, e, sobretudo não atendem ao sinal feito pelos idosos, contrariando uma Lei Federal... Que horror! Enfim diretor, a cidade está um CAOS. Sendo assim, o melhor a fazer é mandar alguém resgatá-lo. Pois definitivamente não entro em cena sem ele. Gritava a “Prima Dona” completamente debulhada, enquanto um ator que a consolava, associando-se a sua angustia, implorava a “boca pequena”:
– Senhor Diretor, dessa maneira não temos condição nenhuma de darmos início ao espetáculo!
-Por acaso você responde por todo o elenco?... Grita o diretor de forma ríspida, completamente perturbado.
Afinal, era preciso compreender o nervosismo que assalta toda estréia. Os atores sentem-se expostos, sensíveis, inseguros, de coração na boca, anestesiados numa expectativa louca que só acaba quando o pano for aberto. Mas isso agora não vem ao caso, é tema de outra conversa.
Naquele instante a urgência era outra: “Seu Fernando não tinha chegado!”
“Seu Fernando era fiscal aposentado da prefeitura e tesoureiro da “Associação dos Servidores Municipais” Era uma pessoa alegre, brincalhona, excelente contador de piadas e anedotas. Sempre divertido, se transformava em mágico ao final das tardes, e entre um cafezinho sem açúcar e outro, alegrava com muito humor os amigos e freqüentadores do “bar Municipal” na rua da Conceição, centro de Niterói, do qual passara a ser uma figura notória e assediada.
Com certeza, numa dessas noites empolgadas que vez em quanto acontece, foi vítima de um fugaz “apagão de memória” que o fez esquecer de cumprir sua obrigação mais difundida artisticamente: o dom de ser o ponto.
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Hoje essa figura não mais existe. A eletrônica e o dinamismo do teatro mataram a “divindade da segurança”.
Mas naquele dia, naquela noite de estréia, pela primeira vez atrasado, ao abrir a cortina, reinou pela ultima vez na “caixa do ponto”.
Hoje é só saudade.
Ronaldo Trigueiros Lima