Resolvi ser Capitu

RESOLVI SER CAPITU: Uma narrativa baseada na Obra Dom Casmurro

de Machado de Assis

Considerando que na primeira leitura que fiz de Dom Casmurro, eu tinha um relacionamento estável com uma pessoa que foi e é muito especial, ou seja, eu era o Bentinho que amava e pensava ser amado, não tive dúvidas de que Capitu o traiu. Bentinho amou demais e não foi correspondido. Percebe-se em algumas citações a ingenuidade, a doçura e a fragilidade de Bentinho, como as que seguem:

“... eu era puro, e puro fiquei, ...” (Capítulo LI)

“... se ela vivia alegre é que já namorava a outro...” (Capítulo LXII)

Capitu vivia alegre, enquanto Bentinho chorava todas as noites. (Capítulo LXII)

Capitu demonstrou indiferença quando concordou com a mãe do Bentinho e disse que “ele daria um bom padre”. (Capítulo LXV)

“... Pois a mim quem me há de casar há de ser o padre Bentinho; eu espero que ele se ordene!” (Capítulo LXVI)

“Não precisa correr tanto; o que tiver de ser seu às mãos lhe há de ir.” (Capítulo LXVI)

Considerando minha segunda leitura e o fato de eu estar vivenciando um momento especial, que me fez rever os meus conceitos sobre Capitu, vejo-a com “outros olhos”. Um momento no qual, pasme, Meritíssima, eu sou ao mesmo tempo, Bentinho e Capitu. Ela traiu, provavelmente, por solidão. Afinal, Bentinho foi estudar e ficou muito tempo longe dela. Capitu era dissimulada por natureza. Aliás, dissimuladíssima! Apesar de ser menina, ela era uma “mulher” determinada, pois sabia exatamente o que queria, “doa a quem doer”. Em termos atuais, “ela jogava no time que estava ganhando”. Já o Bentinho era puro, inseguro e obcecado. Em um certo momento da obra, no Capítulo XXXI, ele cita que “ela é mais mulher do que ele é homem”. Em outra passagem, ele declara que “ficou com inveja” (Capítulo XXXVIII). Na realidade, Bentinho queria ser tão seguro e tão dissimulado quanto Capitu. A menina falava sempre o que pensava ou sentia, ele, no entanto, calava-se na maioria das vezes, como a passagem a seguir:

“... e eu tornei ao filho submisso que era”. (Capítulo XLI)

Bentinho também sabia ser dissimulado, pois vivia fugindo dele mesmo, como no Capítulo XLIII, em que Capitu pergunta se ele tem medo, e ele responde evasivamente com outra pergunta: “Medo de que?”

Ora, a visão de quem pensa que foi traído é diferente daquela de quem ama e é correspondido. Revive-se todo o passado à procura de fatos ou indícios, mais indícios do que fatos. Porque dificilmente alguém é homem/mulher suficiente para falar ao outro que traiu.

Um dos Bentinhos crê que Escobar foi falar com ele no episódio do teatro para confessar a verdade. Meritíssima, disse a este Bentinho que ele narrou: “Preciso falar-te” apenas. Nada mais. Veja que advogada ele arranjou, pobre infeliz! Disse-lhe que Escobar poderia ter pedido qualquer coisa: um favor, dinheiro. Poderia ter contado um problema... Sejamos honestos, ninguém chega para o outro e confessa: “Traí-te”. Corre-se um risco de se passar um constrangimento grande demais, talvez um tiro.

O “meu eu Bentinho” diz: “Para que descobrir a verdade, se irei sofrer.” O certo é que Bentinho, além de não pagar os meus honorários, preferiu ver somente o lado doce de Capitu. Isto é natural nos apaixonados. Torce-se para que “o amor de sua vida” seja para sempre. É isso mesmo!, meu Bentinho, levei por terra a tua defesa porque fostes um fraco ao não querer ver a verdade. E ao condenar-te, condeno a mim mesma. Que se danem os honorários, Merítíssima. Eu já nem sei nem quem sou atualmente. Se sou Bentinho ou Capitu. A verdade é que com medo de ser o “próprio Bentinho”, o coitado, o traído, o pobrezinho, porque este é o papel que ele assumiu por uma vida inteira, eu, a advogada de defesa, resolvi ser Capitu. Mas não a Capitu que traiu para servir aos “seus instintos de fêmea”. Merítíssima! Eu confesso que sou a própria Capitu. Dissimuladíssima! Sou a boa menina para quem deseja apenas ver-me assim. E me mostro, de maneira diferente, para quem assim o desejar. Vivo “meu momento Bentinho” em sua maturidade, em que ele quer relembrar os momentos doces para não morrer afogado em sua própria amargura.

Bentinho, meu querido, eu resolvi abandonar-te, ou seja, arrancar-te de dentro de mim, porque tu és a minha parte fraca, insegura e triste. Eu não quero ser triste. Eu quero ser Capitu: a menina alegre, curiosa, atrevida e talvez inconseqüente. A essas alturas, Meritíssima, já rasguei o meu diploma de Bacharel em Direito. Eu quero que Bentinho seja homem de verdade e tome uma postura como tal. Vai ser feliz, meu amigo! Não precisas pagar meus honorários. Vai ser Capitu!, pois a invejaste a vida inteira. Vai ser feliz! Ainda que penses que já é tarde para ti. A essas alturas, creio que me refiro não só ao Bentinho narrador, mas também ao que vive dentro de mim! Meu Bentinho-cliente, eu resolvi ser Capitu. Prefiro rasgar o meu diploma a ter de defender-te. Não me queiras mal, Bentinho!

Ter relido tua obra me fez ver que eu passei seis anos de minha vida amando... Amando e vivendo as tuas reticências, seu infeliz!

Bentinho para que te sintas melhor e não tão humilhado. Creias na advogada com o diploma aos pedaços. Em algum momento do teu passado, tenhas certeza de que fostes amado. Porém o amor se perdeu em algum momento... E “o meu coração de Bentinho”, me diz que foi o tempo em que vocês viveram separados. Ela te amou... Eu também te amei... Eu te amei, meu Bentinho. Mas o Escobar foi quem estava por perto quando eu precisava de um ombro amigo, revelar minhas confidências, sorrir, cantar e até chorar! O amor não agüenta solidão...

Meritíssima, “o meu eu” está mais confuso que o Bentinho. Ele nutre ainda um amor obcecado que amadureceu fisicamente, no entanto ele ainda é um menino quando manifesta o desejo de “atar as duas pontas da vida e restaurar na velhice a adolescência”, conforme o Capítulo II. Ele ficou preso a um amor do passado e esqueceu de viver. Para “o meu Capitu”, digo-lhe, é óbvio que ainda lhe tenho amor. Contudo, o amor mudou enquanto me deixavas sozinha. Parece que secou e murchou. Como bem disse o nosso narrador no Capítulo II, parece que “falta eu mesmo”.

Meus caríssimos, eu encontrei o Escobar há alguns dias. E jurei que não deixaria meu tempo passar mais. Mas é um tempo em que as horas transcorrem e na minha mente o relógio parou... Como tu mesmo disseste, Bentinho-narrador: “Ora, como tudo cansa, esta monotonia acabou por exaurir-me também”. (Capítulo II). Ora, Bentinho-narrador, eu cansei de ser você. O Bentinho que ama e vive a lamentar e prefere a auto-piedade a ser feliz! Bentinho, eu tive a felicidade de encontrar “um José Elias”, que me fez ver que nem tudo é como a gente deseja. Ele me disse faz poucos dias: Acorda para a vida, tu tens o direito de ser feliz! Não perde o teu tempo sonhando com um amor que não existe mais...

Bentinho, eu tive mais sorte do que tu, pois eu tive uns três ou quatro José Elias. Te digo, Bentinho, meu cliente: “eu não via porque não queria ver que o meu amor tão cômodo fosse mudado ou destruído. Me parece que esta é uma situação confortável não desejar conhecer outros amores. Quando Capitu te perguntou “tens medo de que?”, naquele momento, já devias ter respondido a ela: “De ser eu mesmo, de ter vontade própria, de fazer as coisas que tenho vontade”. Pasme, Bentinho-narrador: “Tu tinhas medo de ser feliz”.

Merítíssima, este “menino-homem” ainda pode ser feliz! Ele precisa parar de se condenar por ter amado. Parar de condená-la por tê-lo traído.

Bentinho, preciso falar-te, pois é importante que conste nos autos: “Tu não reparaste que “Capitu uniu o útil ao agradável?” Se não percebeste, tu mesmo o disseste em duas passagens da tua narração, seu infeliz. Estas demonstram que ela te deu “um baita golpe do baú”. No capítulo II, em que sua mãe se refere a família Pádua que perdeu tanta coisa numa grande enchente. Já no capítulo XVI, o pai de Capitu pensou em cometer o suicídio porque não queria “confessar à sua gente esta miséria”. No capítulo XXX, sua metáfora diz: “Pádua roía a tocha amargamente”. E continuou: “... não acho outra forma mais viva de dizer a dor e a humilhação do meu vizinho”.

Vejas bem, tu relembraste o que Capitu falou no capítulo XVIII: “... se eu fosse rica,...”

Que a verdade seja dita, tu “jogaste a toalha no chão”, ou seja, desistiu antes mesmo de lutar. Vejas bem, tu o disseste:

“... Promete-me que seja eu o padre que case você?” (Capítulo XLIV).

Ao que Capitu respondeu-lhe o óbvio: “... seria esperar muito tempo; ... prometo que há de batizar o meu primeiro filho.” (Capítulo XLIV).

Bentinho, a tua ingenuidade é comovente. O que tu esperavas? Capitu já dava mostras do que viria acontecer. Embora, eu deva defender-te, digo que ela também foi vítima.

No capítulo XLVIII, Capitu tinha noção das coisas quando afirmou: “Você pode achar outra moça que lhe queira, apaixonar-se por ela e casar”. Meu caríssimo Bentinho, o mesmo valia para ela. Então, o juramento foi uma bobagem, “coisas de criançolas”. Bentinho, meu cliente, só não temo que cometas o suicídio porque não se pode morrer duas vezes. Até mesmo por amor...

Bentinho, ou melhor dizendo, Machado de Assis, aonde quer que o senhor esteja: porque chamou Shakespeare de plagiário? Teria sido inveja? Perdoe-me, Meritíssima, o autor não é réu e não está presente para defender-se.

Voltemos a Bentinho. Meu caríssimo, tu fizeste tanta referência a Satanás em tua narração. Acalmá-te que já estou acabando e não gosto de ser interrompida! Ainda faço uso da palavra. Perdoe-me, Merítíssima. Meu amigo, a vida tem de ser vivida e nela fazemos as próprias escolhas e Deus não tem culpa de nada.

Perdoe-me, Meritíssima. Tenha paciência que já irei finalizar. Perdoe-me mais uma vez, pois o momento que estou vivendo não permite-me mentir, nem para mim mesma. Machado de Assis, que Deus o tenha, o guarde e o conserve no Paraíso Celestial, pelo que me consta e é o que está em sua biografia, teve um grande amor que casou com outra pessoa por interesses, digamos, financeiros. Caríssimo autor, a sua obra é, incontestavelmente, maravilhosa, no entanto, com o perdão da palavra, parte de sua vida foi escrita nela. Não me queira mal. Digo-lhe, com o carinho de uma leitora que gosta de suas obras, quando reencarnar escreve sobre o quanto você tentou ou tentará ser feliz, ainda que possa não dar certo. Me prometa que serás muito feliz.

E em relação à menina Capitu, deve-se, portanto, respeitar-se a presunção da inocência: “In dubio pro reo”, pois “todo o réu é inocente até que se prove o contrário”. Capitu não se defendeu e não teve direito à defesa. Foi julgada e condenada sem ser ouvida.

Serei honesta: “não entendo nada de latim, esta contribuição devo ao Excelentíssimo, melhor dizendo, ao Procurador da República para quem trabalho e que teve a paciência de escrever estas palavras em latim num pedaço de papel. Ele o fez, sim. Deve constar nos autos: Ele o fez, como sempre, elegantíssimo! Mas isto já é uma outra narrativa...