DESAFIO
Mais uma vez, estamos frente a frente. Ela me encara com sua frieza peculiar, pungente, desafiadora. Observa todos os meus movimentos como o predador que espreita a caça. Mas não demonstra intenção de atacar. Apenas observa, e através de minha fantasiosa imaginação, uma gargalhada infernal preenche o vácuo entre nós, zombando de minha passividade.
A memória, traidora vil do orgulho, traz lembranças de sorrisos e lágrimas em madrugadas de chuva e frio, momentos em que tudo que tínhamos era um ao outro, enquanto o mundo ruía aos poucos, pelo assassínio, doença e solidão. Por um instante, que dura a eternidade de um pensamento, acredito perceber um sorriso tímido, mas encorajador desenhando-se para mim...mas, não! Era apenas meu reflexo, num silencioso e covarde pedido de indulgência....
Ela espera. Impassível, muda... e ainda assim, sua intransigência é tão tangível quanto o medo que sinto.
Sinto os olhos mareados; ato contínuo, a carícia condolente da lágrima em meu rosto, e seu gosto amargo, em forma de impotência, desenhar meus lábios trêmulos, nervosos. As mãos, preguiçosas, levantam num espasmo de ímpeto, enquanto os músculos da face contraem-se, num costumeiro arroubo de coragem e ira. A vermelhidão dos olhos denuncia a determinação que move meus dedos sobre o teclado, agredindo-o sem piedade, enquanto ela apenas fita meus movimentos alucinados, ainda imóvel. Extravaso todo ódio, amor, repulsa e dolo em palavras que preenchem toda simetria de seu rosto inexpressivo, mas ela sempre quer mais, nunca dá-se por satisfeita.
O suor poreja toda extensão de uma face abatida, enquanto os dedos continuam martelando o alfabeto, centímetros abaixo, dando vazão ao turbilhão inspirador e contundente que forma palavras sem nexo aparente, mas que revelam um mundo de dissabores e vãs esperanças.
Paro.
Ela não diz, mas percebo seu contentamento, por finalmente ter servido adequadamente ao seu dono, mestre, feitor e...vassalo. O cursor, desafiador e zombeteiro, ainda pisca, como se clamasse por mais. Rendo-me à exaustão criativa, e aperto o botão que é gérmen diário de meus líricos martírios e gozos .
Silêncio. Mais uma batalha fora travada e, desta vez, vencida, contra o tempo, vida, poesia e a tela do computador...