DUPLA PERSONALIDADE

Por Vicentônio Silva

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O rapaz de cabelos empastelados percebeu largo sorriso vindo do outro lado da pista improvisada de dança. Bebeu dois ou três copos de mistura de gengibre, tomou fôlego, evidenciou a fivela de boiadeiro do tamanho de um prato, ajustou o chapéu, colocou o relógio de prata, expôs os grossos e chamativos cordões de ouro:

- A moça me daria o prazer da dança?

Dançaram boa parte da noite, tomaram refrigerante. Ele comeu duas porções de batatas fritas – tão transparentes quanto folhas de papel manteiga. Ela preferiu pamonha e dois milhos cozidos cujos caroços insistiam em se prender aos dentes. Atenciosa, cabelos pretos e lisos escorriam até os ombros e, à intensidade do vento, balançavam poeticamente, criando clima romântico.

Encontraram-se no segundo dia de festividades, voltaram a dançar, a conversar, a trocar telefones e endereços eletrônicos e, três semanas depois, entravam no cinema para assistir ao filme agraciado com prêmios de festivais nacionais. Os amigos dele já se acostumavam com o ar delicado, diplomático e elegante da moça que falava o essencial, distanciava-se de polêmicas e esquivava-se de conversas desinteressantes. Os pais, o irmão e o primo também se familiarizavam com o rapaz, primeiro a se servir da macarronada de domingo e voluntário na organização da cozinha após a refeição.

O relacionamento deslanchava ao ponto de, no sétimo mês, rendido aos encantos, pronunciar-se formalmente numa festa de fim de semana. A mãe se emocionou, o pai discursou, o irmão animou a bagunça. Uma prima aproveitou: - Tens certeza de que vais te casar com ela? O noivo espantou-se, mas, antes de qualquer palavra: - Podes escrever: vais aprender o que é bom para tosse...

Enquanto trabalhava e juntava dinheiro das festividades e da entrada substancial num apartamento popular, as palavras da prima ressoavam. Por que aprenderia o que era bom para tosse? Tentou captar deslizes do sogro, atrevimentos da sogra, atividades discutíveis do futuro cunhado e até o primo, que morava com a família, entrou na investigação.

A noiva desdobrava-se em carinhos e nos pratos preferidos, optava pelas decorações mais baratas, sonhava com uma viagem a Bonito, no Mato Grosso do Sul, caminhava no fim de tarde e, ao chegar em casa, trancava-se no quarto por quase uma hora praticando exercícios que enrijeciam o bumbum e proporcionavam firmeza aos seios. Silhueta e medidas perfeitas para o casamento.

Pouco mais de dois meses para a cerimônia quando, numa lanchonete de que eram fregueses, jogou-se de unhas e dentes sobre a garçonete que, por equívoco, trouxera mostarda no lugar de maionese. Uma hora depois, agia como se o incidente protagonizado por ela na frente de clientes perplexos e crianças extasiadas fosse algo comum.

Uma vez o irmão esqueceu-se de levá-la ao dentista e, em retribuição, destroçou o quarto e jogou as roupas dele numa imensa fogueira. O pai disse qualquer besteira e a coleção de vinhos – os mais raros, cento e doze anos – amanheceu esfacelada. O carteiro sugerira a ida ao correio a fim de procurar a conta do cartão de crédito e uma barra de ferro atingiu-lhe as costas. O entregador de pizza atrasara dez minutos e misteriosamente caiu da moto quando chegava à esquina. Um professor atribuíra-lhe nota menor do que nove e o carro anoiteceu riscado, vidros quebrados, pneus rasgados.

Adotava um comportamento na frente das pessoas, mas bastavam virar as costas para que colocasse os planos em ação. Mesmo advertido pelos amigos da tempestade em que viveria, o noivo convencera-se de que ela mudaria definitivamente. Faltava mais ou menos uma semana para o enlace quando, chegando à casa dela, percebeu o fraque embrulhado, estendido sobre a mesa.

- Vieram deixar à tarde, disse, orgulhosa. Vamos ver como ficou.

O noivo abriu, contudo percebeu o olhar fulminante:

- Pensei que tivesse recomendado a você uma gravata de nó Windsor e, pelo que vejo, desobedeceu-me. Escolheu um nó simples.

Sem nada acrescentar, ela entrou na cozinha, mexeu em alguns talheres. Quando voltou à sala, ele tinha desaparecido.

*Publicado originalmente na coluna Ficções, caderno Tem!, do Oeste Notícias (Presidente Prudente – SP) de 11 de maio de 2012.