papéis de bala
Um sorriso no relance já foi suficiente para as pernas tremerem. E lá estava você, descendo as escadas como se elas lhe pertencessem, como se o andar lhe pertencesse, como se tudo ali lhe pertencesse.
Lá estava você. O dono de tudo. Tudo,inclusive eu. Que agora transformava as gargalhadas de antes em um sorriso de nervoso enquanto observava o seu andar pela fresta que havia entre a parede e a escada.
Os segundos pareciam arrastados e a cena em câmera lenta enquanto você descia vagarosamente as escadas com o sorriso estampado. O sorriso. O maldito sorriso que eu já havia visto um outra vez, e que assim como antes parecia um punhal enfiado no meu peito.
Senti a pontada, mas mantive o sorriso.
Os amigos sentados na mesa pareciam desfocados, as ruas pareciam desfocadas, na verdade tudo estava desfocado, exceto você. E exceto ela.
Eu não podia ver o seu rosto mas sabia que ela estava feliz. As pessoas sempre parecem felizes quando você está por perto.
Na cena seguinte eu correria para o bebedouro e me depararia com vocês porque ainda não os tinham visto. Você ficaria encabulado e ela perceberia que estava sobrando só pela nossa troca de olhares. Então eu te daria um abraço e um beijo e só restaríamos nós dois.
Mas na cena seguinte não houve o nós, e nem nas anteriores, e nem nas próximas que se seguiram.Talvez o nós não exista mais há muito tempo. Talvez até ele nunca volte a existir.
Mas enquanto eu pensava em todas essas coisas e ouvia o maldito narrador de filmes de romance que vive dentro da minha cabeça esmiuçando a minha dor sobre o “nós”, você descia as escadas com ela a seu lado e nem me viu pela fresta.
Na cena seguinte então eu só cutuquei uma amiga e pedi que ela observasse o casal que descia a escada- Dividir o momento às vezes faz doer menos-. Mas tudo que ouvi foi:
- Que casal?
- Aquele ali que já foi. Deixa! Agora nem dá mais para ver.
Aquele ali que passou pela fresta e que, nem minha amiga, nem ninguém, poderiam adivinhar, porque as pessoas não costumam observar casais pelas frestas. E nem eu costumo. Exceto nas raras exceções em que o belo rapaz desce a escada com o sorriso no rosto, a namorada ao lado e o meu coração no bolso de lado da mochila guardado junto com os papéis de bala.Ambos esquecidos a tempo.