Síntese de Um Dia Mais ou Menos

Acordo depois de um sonho perturbador. Entorpecido pela ausência de nexo e significado dele, dentro da atual conjuntura na realidade, consigo, mesmo assim, me sentir meio deslocado. Vejo que já amanheceu. O despertador toca, e minhas duas gatas sobem na cama e se enrolam no meu peito. Perdi as meias no meio da noite e meus pés estão gelados. Os compromissos desinteressantes e laborais me esperam. Não queria sair da cama... Mas, levanto e raspo à máquina a barba do pescoço e do queixo. Tomo um copo de leite e um banho sem pressa. Coloco a cueca furada. Troco a meia. Coloco a calça que aperta nas coxas. Coloco o tênis roxo que as pessoas olham com a sobrancelha erguida. Coloco a camiseta preta que dá impressão de que ainda malho. Abro o portão com um cotonete pendurado na orelha. Tomo todo o cuidado do mundo para não fazer igual na semana retrasada, que pendurei o infeliz e infelizmente bati a mão nele de uma maneira que ele pareceu penetrar até quase meu cérebro e me fez sentir a mais hedionda das dores, que perdurou por uns três dias. O céu, hoje, está lindo. Todos os dias ele está lindo. Lindo e imutável. Mas às vezes parece opressor. Parece que, a qualquer momento, vai desabar sobre minhas costas. O cachorro do fim da rua que antes queria morder meu calcanhar; que ia latindo hostil atrás de mim, hoje, pula à minha volta; senta à minha frente e espera carinho, com olhos castanhinhos e calmos. Eu entro no ônibus. Eu saio do ônibus. Eu entro no trem e saio do trem. Eu entro em outro ônibus e dele saio. Caminho por ruas arborizadas, das casas geminadas, das casas antigas, das casas com quintaizinhos com jardinzinhos com gotas orvalhando do recém-banho de mangueira que as velhinhas deram nas plantinhas. Entrego os documentos na expedição de um lugar que, por duas vezes, fui dado como inepto a trabalhar, graças ao meu péssimo desempenho em entrevistas, atravesso a rua e peço um pingado e um pão na chapa que, para variar e quase que com certeza, serão o ponto alto do meu dia. Mastigo bovinamente, sorvo bovinamente, e repouso os olhos nas coxas - e no meio delas - de uma coroa que tem cara de que ganha bem demais pra fingir que trabalha. O marido dela está do lado. Peço a conta, pago a conta, saio, caminho por paredes preenchidas com trepadeiras, chego ao ponto de ônibus, espero quinze minutos sob o sol gostoso de Outono, entro no ônibus, desço na estação de metrô e entro em um trem e saio do outro e saio do outro e entro no outro e saio no outro e saio da estação e saio na avenida-cartão-postal-imbecil da cidade/do país. Num desses quadrados fincados no chão que se espicham em direção ao céu, no nono andar de um deles, estará um computador me esperando, e dentro dele problemas que não são meus que tenho que resolver - é assim que ganho a vida. As horas se arrastam ignominiosamente hoje. Anseio pelo meu almoço. Passam-se três períodos geológicos disfarçados de horas, então eu saio pra almoçar. Rôo as unhas e como as pelezinhas das pontas dos dedos enquanto esse meu prato de comida que custa demais por ser um prato de comida simplesmente não chega. Não consigo por um minuto parar de buscar bundas e pernas femininas com os olhos. Penso que devo ter algum problema com relação a esses picos altíssimos de testosterona que hão de me propiciar um pescoço de coruja qualquer hora - ou outra crise de torcicolos. A comida acaba e eu pago e saio. Entro na galeria dos coreanos em busca de uma máquina fotográfica. Ele são frios e diretos. Hostis. Folgadíssimos. Mas têm bons preços. Ontem à noite passei perto da saída do estacionamento do prédio e eles estavam saindo em SUVs importados. A polícia vive fechando esse lugar. Saio dele e volto à minha mesa e seus problemas. As horas se arrastam ignominiosamente, novamente. Faltando dez minutos pro fim do meu horário, eu conto meu sonho estranho a quem dele fez parte. "Que horror", é tudo o que ela diz. Eu desligo o computador e saio. Desço as escadas espiraladas e paro no saguão do prédio. Na portaria, que seja, e olho os dois lados: à esquerda, metrô cheio e casa mais cedo; à direita, faculdade que decidi trancar e não pude e que paguei a mensalidade ontem, me esperando com aula da voz estridente que não explica a matéria, apenas a apresenta em slides com português sofrível e fraseologias deprimentes; à frente, um farol e uma livraria. Caminho à direita, dobro a esquina e paro no farol. Ele está verde para os carros e estou parado. Ele está amarelo, e continuo parado. Ele está vermelho e eu giro nos calcanhares e entro na livraria. Compro um livro. Olho a vendedora subindo uma escada procurando alguma coisa nas prateleiras mais altas. Saio da livraria. Metrô. Metrô. Trem. Ônibus. Hoje não há lua, parece. Caminho até em casa. Chego. Abro a porta. As gatas dormindo aninhadas no braço do sofá. Beijo as duas. Falo com elas naquela voz de débil mental que fazemos com animais ou crianças. Crianças eu prefiro ignorar. Desculpa, universo. Entro no quarto, acendo a luz, largo mochila no chão, tiro camiseta preta, calça que agarra as coxas, tênis roxo e me jogo na cama. Logo as duas vêm e sobem na minha barriga e ficam se enfiando no meio das páginas do livro que tento ler. Vou à cozinha e elas vêm atrás miando ininterruptamente atrás de um belisco. Eu abro a geladeira e os armários e as gavetas e as portas e não há nada para comer. Eu agacho e fico miando pra elas, pedindo um pouco de ração na língua que penso ser a que elas compreendem. Troco a água delas. Troco a ração. Volto ao meu quarto, abro o livro, estico as pernas e penso: algo valeu a pena hoje. No segundo subseqüente penso: essa é uma ilusão. Hoje foi igual ontem, só que um pouco menos pior, e amanhã será igual hoje, com as probabilidades de ruindades e apatia e quem sabe bonanças sendo iguais para quase todos os lados. Então eu apago a luz nessa hora que me permite ainda desfrutar de oito horas de sono. Porque oito horas de sono representam pelo menos um terço da felicidade diária que penso que preciso pra continuar empurrando essa coisa que não compreendo pra frente. E durmo, enfim, sonhando acordado que terei sonhos dormindo.

09/05/2012 - 23h33m

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 09/05/2012
Reeditado em 09/05/2012
Código do texto: T3659414
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