Inconfidências, inconveniências

INCONFIDÊNCIAS, INCONVENIÊNCIAS

(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 09.05.12)

- Não deviam permitir que envelhecesse! - Ela disparou, os olhos injetados.

- Fazer o que? - Ele contrapôs. - Se as pessoas não morrem, elas envelhecem.

- Nem tolerar que chegassem jamais perto de qualquer igreja! As religiões, todas, não fazem mais do que amolecer o caráter e curvar a espinha! Tarefa ainda mais fácil se o elemento se tornou um velho: por idade, por escassez de saúde ou por opção de vida - Ela ignora o comentário que Ele fez.

- Como se fosse fácil tratar todo mundo com o suprassumo da gerontologia. Como se fosse só lhes dar pílulas da eterna juventude - Ele resmunga.

- Não se trata disso, não te faças de desentendido - agora Ela o escutou. - Como é que sempre se fez? Como é que sempre se evitaram os conflitos potencialmente comprometedores?

- Aposentando compulsoriamente com vencimentos integrais? - Ele arrisca. - Dando férias perpétuas como adido cultural da Embaixada na Letônia? Internando num manicômio judicial?

- Eu é que ainda vou acabar um dia te internando num manicômio! - Ela explode. E suavizando em seguida o tom da voz e a rudeza do rosto: - Parece que hoje nasceste só pra me contrariar, só pra me irritar. Qual foi o bicho que te mordeu?

- Acho que andas meio nervosa - Ele apalpa cuidadosamente o caminho, as palavras, o sorriso desenxabido.

- E não hei de andar?! Não viste isso, por acaso? Então não precisavas nem perguntar - Ela mal se contém. - Não podiam permitir que gente assim envelhecesse!

- E fazer o que com elas? - Ele decide ser direto.

- O que sempre fizeram, o que sempre fizemos: matá-las antes de entrarem na imbecilidade, antes de saírem por aí dizendo asneiras, antes de apanharem um microfone para pregar a palavra de Deus. Neopastores neoevangélicos de almas arrependidas, bah! Fizeram o que fizeram de livre e espontânea vontade, porque acreditavam no que faziam e ganhavam muito dinheiro para fazer tudo direitinho e, depois de velhos, saem-se com essa de consciência, reconciliação e busca pela paz. - Furiosa, Ela: - Deveriam é ter buscado a paz eterna no momento em que ainda estavam lúcidos, isto é que sim!

- O General teu pai, com todo o respeito, deve estar agora se revirando no túmulo - Ele enfim concorda com Ela.

- O General - que Deus o tenha! - teria resolvido isso há muito. Assim que esse delegadinho de Guerra abrisse o caderno para escrever a primeira palavra, a primeira letra do título do livro, ele teria deixado de ser gente, de ser deste mundo - Ela continua exaltada. - Não fizeram o que Papai teria feito de imediato para preservar a pele e a memória de todos, e o que acontece? O que acontece, hem?

- O General é citado no livro com todas as letras do nome, na patente de Coronel, como torturador, assassino e incinerador de cadáveres numa usina de açúcar em Campos dos Goitacazes - Ele fala como se tivesse decorado o texto.

- Isso mesmo! - Ela aplaude, entusiasmada. - Isso mesmo! E, no entanto, ele apenas honrava seu juramento de defender a Pátria contra o inimigo, contra esses solertes lacaios pagos com o ouro de Moscou! Se o Alto Comando fraquejava, o General impunha sua linha, dura porém eficaz, e o Brasil tornou-se um oásis de paz e prosperidade num mundo mergulhado em sabotagens, greves, atentados, conflitos internos e guerras fratricidas.

- É verdade - Ele parece perplexo. - Como é que falharam assim, deixando vivo um delegado do DOPS que sabia de coisas para abrir o bico? Será que foi só porque ele vivia meio escondido lá no Espírito Santo?

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Amilcar Neves é escritor com oito livros de ficção publicados.

"Não podemos fazer o que for necessário. Temos que fazer o que for certo."

Gary Bostwick, advogado, citado por Janet Malcolm em "O Jornalista e o Assassino".