O SURURU DO CORAÇÃO

De repente um sururu danado no hospital. Lá estava a mãe de minha amiga envolvida no maior qüiproquó da região.

Com os dedos tampando os orifícios das fossas nasais, envolvi-me também no drama e fiquei sabendo do cerne da história.

Tudo aconteceu por medo, afobação, falta de organização e método.

Ha seis meses a mãe de minha amiga em conversa fofocal com o Senhor Volta, lá pelas tantas, perguntou de que mal a mãe dele havia falecido.

- Do coração! De pronto o Senhor Volta responde e completa.

- Ela estava bem, assim como você está agora e de repente, bumba, aconteceu!

- Mas... mas... gaguejando a mãe de minha amiga quer detalhes.

- Ela simplesmente não fazia os exames de rotina! Abrilhantou o Senhor Volta, e acrescentou em tom de ordenança:

- Pelo seu aspecto, seria conveniente você fazer os exames médicos, principalmente do coração!

Colocaram um ponto final no tagarelar e ela, gelada, tremendo, com tonturas, se apoiando no ombro da filha pede para levá-la imediatamente ao médico.

O médico faz todos os exames e conclui:

- Nada de errado com a senhora. Tudo está funcionando adequadamente. Pode ir tranqüila.

- Por favor, Doutor, de-me uma guia para exames do coração!

O médico com pressa e querendo se livrar da mãe de minha amiga lavra a guia e a entrega. Num telefone público qualquer ali ao derredor da clínica a mãe de minha amiga agendou o tal exame.

Ao terminar o telefonema, e dar meia volta para sair, torce desgraçadamente o pé num maldito buraco na calçada. Aos gritos é levada ao pronto socorro para exames. O médico nada constatou, mas forneceu uma guia para raio x da região afetada.

Pelo acúmulo de serviço os exames só seriam possíveis seis meses mais tarde. Guardou a guia para o coração e praticamente dispensou a guia para o raio x do pé. Ela caminhava bem, mas seu coração! sabe lá Deus!

O tempo não para e por isto passou correndo, feito um doido, despreocupado de tudo.

Certa manhã a mãe de minha amiga acorda toda esbaforida. Deita os olhos num calendário qualquer e confirma: - Era a véspera do exame do coração. Ela pula da cama e sai doida à busca da guia.

- Cadê a guia? Foi a pergunta que bailou louca por toda a casa.

- Cadê a guia? Cadê a guia? E a pergunta foi repetida aos berros, naquela casa, milhares de vezes.

Já sem forças, não gritava, resmungava apenas em sumida voz:

- Cadê a maldita guia? E todo mundo em pavorosa procurando a dita guia. Gavetas, armários tudo ficou revirado, a casa ficou num pandemônio danado, e nada da guia.

Foram inúteis as buscas que se estenderam noite adentro. Por fim a empregada aos prantos confessa que jogou uns papeis na lixeira tempos idos.

A madrugada estava fria e uma neblina cobria a cidade como se fosse um véu macabro de noiva morta no dia do casamento. Era fria e umedecia os ossos. Minha amiga, sua mãe e a empregada no lixão da cidade reviravam afoitas cada centímetro quadrado daquela imundície toda. Restos de comida, merdas e outras nojeiras passavam de mão e mão na desesperança quase incontida de encontrar a maldita guia.

A madrugada rendeu-se ao dia que veio com o sol escaldante. O cheiro do monturo era insuportável e três criaturas, quase irreconhecíveis lá estavam chafurdando tudo ao lado de magros cães, gatos pestilentos e centenas de urubus. Mendigos sonolentos, sujos, chegaram e ao verem as três quase teve o início de um tumulto geral, e a pergunta que não queria calar ecoou no lixão:

- O que vocês três estão fazendo aqui no nosso sagrado ambiente de trabalho?

Um momento de sepulcral silêncio e as três imundas criaturas, aos prantos, amedrontadas, tentaram explicar implorando ajuda.

Mendigo é bicho sujo, ignorante e feio, mas tem dentro da esquelética carcaça um bom coração, e assim lá estavam eles também chafurdando aquele monturo atrás da famosa guia.

O sol a pino só não queimava a pele das três porque elas estavam encobertas de excrementos e restos de alimentos.

- Achei!

Como se fosse o uivo da fêmea na hora do orgasmo, um dos mendigos, lá mais no alto, de braços erguidos segurando um papel grita:

- Achei a guia! Achei a guia!

Com a guia na mão, as três choravam copiosamente circundadas pelos vagabundos do lixão que aplaudiam e cobriam de imundicie ainda mais as costas das três com suas mãos batendo em felicidade.

As três imundas pegaram o caro e saíram cantando pneus.

Faltava pouco tempo para a hora do exame.

Na portaria o porteiro saiu correndo com os dedos nas narinas. O povo que aguardava atendimento, ao sentir o cheiro de carniça e merda saiu em debandada. Das atendentes apenas uma, com máscara, ficou para recepcionar as três. A polícia foi convocada.

A mãe de minha amiga olha para atendente e apresenta orgulhosa a guia toda suja de merda, amassada e quase desfigurada.

A atendente veste uma luva, pega aquilo, lê com dificuldade e pergunta:

- É o exame de raio X do seu pé direito? Não é?

A mãe de minha amiga dá um urro que ecoou por todo o hospital

- Puta que o pariu achamos a guia errada!

Ela só não caiu porque a polícia com máscaras contra gases chegou e colocou as três em camisa de força, levando-as para o pinéu.

E eu nada pude fazer!

Mario dos Santos Lima
Enviado por Mario dos Santos Lima em 08/05/2012
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