Recordações de um réu

Ao Chico.

Eu matei o cachorro. A partir disto nossa vida nunca mais foi a mesma. Sem mais dor, nenhuma delas. “Quando não há testemunhas, não existe pecado”; era esta a frase pendurada no varal com um velho prendedor meio mordido. Antes que ficasse escuro demais eu não pude ver, e de última lembrança ainda havia um olhar triste, muito triste, porém sem sinal de dor. Dor é um detalhe quando se tem em mente um velho tapete vermelho onde se brinca numa infância sadia.

Alguns passos na memória para voltar ao tapete. Nele alguns pelos brancos. E o detalhe é que se esses fiapos significassem doença ela agora seria minha. Sob o tapete outro papel, outra frase empoeirada: “Pode existir amor onde não há paz”. Paz não era mais uma questão de honra, nem de estado de espírito, era apenas uma pequena lembrança. A frase fazia sentido, porque naquele momento havia amor.

Nessa altura não tinha mais certeza se o matei. Se estava morto onde estava o corpo? Será que era algum fantasma? De longe um detalhe sobre a cadeira de madeira marrom desbotada pela chuva. Outra nota escrita: “Se há fantasmas é porque é tempo não passou”. A falta de lucidez pode ser muito dura com a gente. O único remédio era vasculhar. Vasculhar a memória e a consciência.

Resolvi subir as escadas. Em algum lugar eu ia encontrar as respostas e memórias. Cada vez era maior a dúvida, mas me ocorria que eu não seria capaz de matá-lo. Logo nas escadas outro retalho escrito: “Você pode enxergar mais longe mesmo com a miopia”. Sem os óculos a miopia era desconcertante. Um embaralhado de imagens e silhuetas vazias de sentido. Eu me sentia assim também.

Como um súbito ataque de desespero me senti o ser humano mais culpado do mundo. A cabeça, o corpo e a visão estavam em desacordo. Não sabia lidar com fantasmas e dúvidas. Eu seria assim tão cruel? Nesse pequeno tempo de reação e desespero me veio a mente uma sensação e lembrança gélida. Uma espécie de sinestesia. Consegui sentir no rosto o focinho gelado. Senti naquele momento uma culpa, um medo. No topo da escada, na porta, estava colado: “A culpa só existe por dentro e nem sempre é verdadeira”. Nesse momento eu não sabia definir a palavra confusão, e se soubesse definiria como “eu mesmo”.

Num súbito fechei a porta desesperadamente. E como um soco na cara, recebi diante dos olhos, colado do outro lado da porta, outro bilhete: “Por acaso sabe alguma prece? Cave!”. Imaginei a culpa cada vez maior. “Cave? Só se fosse a minha própria cova!” Estava diante de pistas, retalhos para me levar a verdade. Qual seria o veredito final para este réu? Inocente? Culpado? Sem pensar, nem terminei de entrar e desci novamente. Só haveria algum lugar onde eu poderia cavar alguma coisa.

Vagarosamente caminhando ia me lembrando do varal, do tapete, da cadeira, da escada, da porta. Todas faziam sentido. Lembrei-me também das emoções de já ter visto estes elementos antes, numa época mais feliz. Ajoelhei perto do pequeno jardim, único ali, onde estavam algumas flores e plantas e cavei. Cavar era um verbo sinônimo da expressão “encontrar o fundo do poço”. Cada um consegue criar seu próprio buraco. O varal da vida era alto e difícil, e para alcançá-lo era preciso se apoiar sobre alguma coisa; e vezenquando ocorria um tombo qualquer. Os tombos se tornavam medos. Cavei. Cavei. Cavei. Última nota estava lá. “Se preciso for, eis esta prece: eu te perdoo, meu amigo.” Dei um sorriso murcho e pálido. Mas, enfim, era um sorriso.

Guardei tudo isso por muito tempo até compreender. Ou pelo menos somar o que seria a resposta dos bilhetes. A primeira a vir à tona é que realmente é preciso o tempo passar para que os fantasmas possam ir embora. O tempo passou e o fantasma era o pecado que criei. A testemunha era eu mesmo e não houve crime. A falta de paz era uma espécie de saudade e se existia amor era porque foi real. Sempre dá pra enxergar mais longe, e se dá pra enxergar mais longe é porque ainda não acabou. A culpa é a fossa, mas se o varal for seguro ainda se guarda a lembrança de uma vista linda. E a prece pode ser a lembrança de tudo, um momento qualquer.

O cachorro poderia ser a sociedade, a vida, a morte, os problemas, a liberdade, a loucura; qualquer coisa que de certa forma nos mata um pouco, nos oprime. Mas pra mim, naquele dia, era apenas ele: meu amigo. Era uma prece bonita. E eu não o matei, eu o amei até antes que ficasse escuro demais para um ponto final.

L Figueiredo
Enviado por L Figueiredo em 08/05/2012
Reeditado em 05/04/2013
Código do texto: T3656672
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