“Doralice.”

Quando jovem, estudei em uma escola de musica (conservatório musical) queria aprender a tocar violão.
Foram anos difíceis, pois eu queria tocar musica clássica, a maioria dos alunos queria musica popular, mais rápida e fácil.
Quando me formei a necessidade me obrigou a trocar o estilo, e migrei para o popular que também sabia, porém não era o que mais eu gostava.
Cada dia as coisas pioravam até que cheguei aos barzinhos da cidade, comecei a tocar na noite.
Não era o que eu queria, mas não passava mais fome.
Porém a tolerância era zero, toda hora tinha alguém sentado e perguntando se precisavam de alguém, para tocar.
Mas realmente entre eu e a maioria que vinha, o pessoal me preferia, pois tocava melhor.
Com o tempo, passei a comandar quase todos os shows de cantores e músicos, dos quais eu era o líder.
Certa noite vi uma cliente que me comia com os olhos.
Era uma moça linda de corpo e de rosto também estava muito bem maquiada.
Não sabia, mas era cobra mandada, veio para falar comigo.
Depois da apresentação dos artistas, era aberto um espaço para quem quisesse cantar.
Ela me ofereceu um drinque, falei que não bebia.
-Qual é o seu nome você toca muito bem.
-Meu nome é Jorge.
Aí veio a cantada, perguntou se poderia cantar uma musica ou duas?
-Sem problemas você só vai somar aos artistas e a casa ganha.
Toda feliz ela cantou, não uma, mas várias musicas, conseguiu até convencer o dono da empresa a, se não contratá-la, mas dar um espaço para ela todo dia dar uma “palinha”.
Como cantava e interpretava muito bem em uma semana já fazia parte do Cast da casa.
Como nada tinha para fazer no bairro que morava, aluguei um pequeno kit no centro, próximo da boate.
Papo vai e vem logo ela estava morando comigo porque, era da zona leste e viajava quase três horas para chegar lá.
Quando terminava a apresentação, lanchávamos e depois era mais três horas para chegar em casa.
Isto estava acabando com ela.
Víamos que estava sempre cansada e até atrapalhando sua interpretação.
Foi aí que veio o papo de dividir o apartamento de dois metros quadrados, maneira de dizer, mas era muito pequeno.
Na entrada já era a cozinha, à direita era o banheiro e uma sala.
Não tinha mais nada. Para lavar alguma peça de roupa tinha que ser na cozinha que ao invés da pia tinha um pequeno tanque.
Para secar era na janela da sala que também era o quarto, ou no banheiro onde fiz um varal improvisado.
Eu havia comprado uma cama de casal por causa do preço, era uma cama usada.
Para colocar uma cama para ela não teria espaço.
O obvio aconteceu começamos a morar juntos.
Ela tinha mil sonhos, e queria que fôssemos para a Espanha, Estados Unidos, China, sei lá para todo lugar que achava estar dando dinheiro.
Dizia para ela:
-Princesa, estamos no Brasil, falamos o português, é difícil?
É, porém estamos em casa.
-Jorge, para mim você não tem garra.
Não me leve a mal, mas você é exímio violonista, poderá tocar em qualquer orquestra sinfônica, ser conhecido no mundo inteiro.
Eu posso cantar em inglês, que arranho, mas tenho boa vós e vou ao topo, só queria que você fosse comigo.
Para não continuar a discussão eu ia fazer a barba, ou arrumar minhas coisas, porém percebia que ela ficava com raiva.
Os dias passavam e ela insistindo cada vez mais.
Certo dia me deu um cheque mate:
-Jorge se você não se resolver, vou tomar uma atitude.
Tenho um contato em Miami.
Nesta semana vou arrumar o passaporte e me mando, você vai ou não?
-Dora, eu te amo, mas não vou sofrer em uma terra que só mata brasileiro, ou escraviza.
-Seja então um escravo em sua terra, bundão.
-Você não me ofende, que Deus te ajude e que tenha sucesso.
Depois parece que se arrependeu, mas não me ofendeu em nada.
-Dora você está nervosa e eu também estaria e estou preocupado por você, mas estou aqui e se precisar basta escrever, ou telefonar que estarei a sua disposição.
Não disse que a amava, com muita frieza me despedi.
Mas meu coração estava aos prantos.
Ainda falei:
-Tenho uma grana que está ociosa, no começo você vai precisar.
Quando ficar numa boa me manda de volta, tá?
-Não precisa.
-Faço questão.
-Então tá.
Na primeira semana te mando com juros.
-Legal, mas você fica até segunda?
-Não vou embora hoje e foi.
Pegou um vale, pois estava esperando para conseguir dinheiro.
Só que eu sabia.
Meses se passaram e perdi o contato e noticias.
Já estava me acostumando com a ideia de ter perdido um amor.
Quando um colega falou:
-Neste final de semana fui para a baixada e sabe quem eu vi lá?
A Dora, aquela que fez bico aqui por alguns tempos.
-Na baixada?
-Na baixada e num muquifo, toda cheia de drogas.
Acho que está morando em baixo da ponte tá um lixo.
-Rapaz, pensei que estava em Miami ganhando dinheiro.
-Que nada entrou na mão de um rufião que andava por aqui.
Este safado, pega moças aqui e fala que vai levar para Miami e só leva até lá.
Toma o dinheiro delas para passaportes e em troca só dá drogas.
Quando elas precisam de mais, manda-as para a esquina para faturar.
-Maldito eim?
-Bicho cão, não vale nada.
Ele ainda anda por aí.
Falando no diabo, olha ele aí.
-E aí rapaz tudo bão?
-Sa comé né?
-E o mulherio.
-Tô cumas gata aí na parada.
-Tinha uma tal de Dora por aqui, dizem que arrumou um galã e se pirulitou.
-O galã sou eu major, tá cumigo.
-Faturando pra você?
-No cumeço sim, mas tomou muita coisa e agora tá estragada.
Mandei embora, tá pela vida.
-Um dia queria falar com ela me devia alguns trocados.
-É ruim ein?
Tá quebrada, ainda ontem eu vi ela no Embaré, parece que tava catando lixo.
-Falou irmão tenho que trabalhar que também estou duro.
Fiz isto para sair da cantada de dinheiro, que estava antevendo.
No sábado pedi alguns dias de folga, fazer uma visita aos parentes no interior.
Como a chefia gostava de mim, ou precisava de mim me liberou.
-Não demora não cara, sabe que aí tá assim de gente querendo teu lugar, mas vai na paz.
Chegando lá.
Como não tinha o que fazer, peguei um taxi e falei:
-Amigo tenho um irmão perdido nas drogas e disseram que estava aqui dormindo embaixo de ponte.
Para mim largava lá, mas minha mãe está doente e sabe como é né?
A gente que só tem a velhinha tem que se sacrificar por estas tranqueiras.
-Hoje de manhã, vi ali pelo terceiro canal uma vadia, brigando com um negão, parecia louca , mas onde tem este tipo sempre tem confusão.
Com a indicação dele não foi fácil, mas achei .
Meu coração se desintegrou.
Uma menina bonita que poderia ser até miss.
Estava só o trapo, magra ao extremo, fumando que parecia uma chaminé.
Parece que a briga não havia acabado.
Ainda sangrava pelo canto da boca.
-Ainda vou te meter o aço negão, você não me conhece; Tenho amigos na polícia, vou te ferrar.
O negão realmente era um homem forte.
Encharcado de cachaça ou sei lá, alguma droga não era grande coisa, mas com ela até o vento ganhava.
-Magrela, agora tu vai ver uma coisa até agora eu não havia batido, mas agora vou te encher de porrada.
-Calma companheiro, a moça é minha, vai para a delegacia esclarecer alguns homicídios que tem acontecido por aqui.
Vamos para lá, quero ouvi-lo como testemunha, ainda bem que você não entrou na lista.
-Não dá falou Doutor, estou me mandando, mas guarda ela por uns trinta dias, tem que se ferrar.
Ela falou:
-Vou para lugar nenhum, você quer que eu fature para você, não é seu puto?
Tentou me agredir.
Só desviei de seu tapa fraquinho e a abracei.
Dormiu nos meus braços, acho que não dormia á muito tempo.
Sai dalí carregando-a e fui em direção à praia.
Deitei-a num banco e atravessei a rua pegando pão com manteiga e café com leite que trouxe para ela.
-Ei moça acorde, vim para te levar para casa.
Acordando me olhou fixamente depois gritou com a pouca força que lhe restava.
-Seu F.D.P. por sua causa que estou aqui.
Você me abandonou, estou morrendo por sua causa.
-Ta bom, mas agora tome seu leite para irmos para casa.
Ela tinha umas sacolas de plástico cheios de porcarias, latinhas vazias com resto de comida, tudo lixo que deixei para trás.
Após se alimentar, vomitou quase tudo.
-No começo é sempre assim logo você se recupera.
Ia em direção à rodoviária quando o motorista de praça encostou.
-Você saiu com tanta pressa que percebi que estava atrás dela.
-Escuta, quer fazer uma corrida tratada?
-Para São Paulo?
-Sim, Largo do Arouche.
-Para lá, eu subo por cem mil cruzeiros.
-Está bom, te pago agora.
-Não precisa, só adianta vinte para abastecer.
-Não, tome cem mil cruzeiros são seus.
-Então vamos, a gente abastece na saída da cidade, gasolina melhor.
Comprei uns dois litros de leite e um pacote de biscoitos.
Paramos de novo na serra, pois a moça embora estivesse de estômago vazio, também estava com o fígado em frangalhos.
Tomou um pouco de leite e comeu poucos biscoitos.
-Jorge, como rezei para que você viesse me socorrer.
E você veio, agora tudo vai mudar, vou economizar e fazer o passaporte e vamos para a Europa.
-Primeiro descanse, depois pensamos nisso.
- Você acha que não sou capaz, só porque dou uma cheiradinha, ou uma espetadinha?
Ah! Você nunca usou você é o todo certinho.
Bundão, foi por sua causa que eu caí na mão daquele safado, que me roubou e me viciou.
Você sabia que tive que me prostituir?
Se você tivesse vindo comigo Jorge, tudo teria dado certo e caiu em sono profundo.
O motorista me falou:
-Se prepare para perder muitas noites de sono, ela tá viciada em grau extremo tenho um filho assim.
Mas espere, eu tenho o telefone de uma Clinica em São Paulo.
E por sorte sua, é de graça, as outras além de ser uma fortuna, não curam ninguém só deixam a pessoa mais viciada.
Tentei deixá-la no apartamento, mas não podia ir na padaria.
O sindico me chamou.
-Dá linha irmão, você é legal mas não vou perder o emprego por sua causa.
-Vou levá-la a uma clinica e só trago quando ela se curar.
-É ruim eim?
Você acredita nisso?
Ele também conhecia o problema das drogas, parece que tinha em casa problema igual.
Fui com ela na clinica tudo parecia bem.
No ônibus até dormiu no meu ombro.
Quando chegou lá a enfermeira pediu para ver seus braços, aí o negocio descambou.
Foi palavrão para todo lado e me xingou de novo disse que eu acabei com sua vida agora queria matá-la.
Mas que antes ela me mataria e voou em minha garganta.
Mesmo debilitada parecia ter uma força demoníaca, só que o pessoal do hospital sabe como segurar e imobilizar um paciente.
Quando se viu na camisa de força, ficou calma e começou a conversar e perguntar do pessoal da boate.
A enfermeira chefe me chamou de lado e falou:
-Ela está num estado de semi-loucura e é capaz de fazer qualquer coisa, se não a internar-mos, matará alguém ou será morta.
-Eu a trouxe aqui porque sei que os senhores são os melhores e vão curá-la.
-Fazemos tudo isto que o senhor falou, só tem um problema.
-Por favor, qual é?
-Só ela pode dar o primeiro passo e ficar sem a droga é pior que a morte.
Mas vamos limpá-la e ela será feliz de novo ao seu lado, pois percebi que o senhor gosta muito dela não?
-Eu a amo, e farei tudo para que ela se recupere.
-Tudo que o senhor podia fazer já fez, agora só depende dela.
-E que eu faço agora?
-Nada, apenas vá embora e volte amanhã as quatorze que é horário de visitas.
Veja, é das quatorze as dezesseis, não se atrase porque aqui as regras não podem ser quebradas.
No outro dia estava lá as quatorze horas.
A enfermeira chefe me chamou de novo em sua sala.
-Sr Jorge, sua namorada, esposa não sei, usou droga pesada.
Sem nenhuma proteção, agora é soro positiva.
Tudo nela pode desencadear em hemorragia, febre alta e até parada cardíaca.
Ela não tem mais imunidade.
Sua vida, se restrita pode ser de um a dois anos.
Se voltar na droga, não terá mais dois meses.
Hoje acho melhor o senhor não vê-la, pois está pior que ontem.
Nós, não damos droga para ninguém é filosofia da entidade..
Fazemos tudo pelos pacientes até a hora final.
Só não podemos aumentar seu sofrimento, que seria dando drogas e deixando-a cada vez mais dependente.
-Desculpe acho que falei demais.
- Senhor Jorge, já houve caso aqui do responsável falar para arrumar-mos droga para o paciente.
Só faremos o que é melhor para ela, vá descansar e volte amanhã, provavelmente ela estará bem melhor.
No outro dia, ela estava triste, porém já conversava calmamente.
Chegando a hora de ir embora ela ficou bem juntinho de mim e falou:
-A noite vou fugir, tenho umas contas para acertar lá fora, você sabe com quem.
-Tá bom amanhã a gente se fala.
Não dei valor ao comentário.
No outro dia de manhã chegou em casa uma viatura.
O policial perguntou por ela e eu disse que estava internada em uma clínica.
-Infelizmente não está mais.
Ontem ela e mais duas pacientes fugiram e aqui na boca do lixo ela matou um senhor com requintes de perversidade.
Elas fizeram a maior bagunça na boca do lixo e do luxo.
Pegaram armas de seguranças, além de matarem um cidadão, roubaram várias coisas de uma drogaria.
Se o senhor souber onde ela está nos informe, ela somente será levada para a clinica outra vez.
-Claro que informarei muito obrigado pelo aviso.
-Os gambé já foram embora meu amor.
Quase morri de medo, agora estava com a polícia à porta e elas armadas dentro do kit.
A primeira coisa que recebi foi um chute no escroto, depois fui arremessado na minha
cama.
-Lembra desta cama amor?
Foi aqui que eu fui feliz e depois você estragou minha vida.
Lembra de nosso plano de ir para a Espanha, America,tínhamos tudo para ser feliz.
Mas você bundão como sempre, me largou na mão daquele safado.
Sabe o que aconteceu com ele?
O mesmo que acontecerá com você e com todos que nos traíram.
Elas, tem gente que as traíram e vão morrer também.
Nisso arrombaram a porta.
-Ponham as armas no chão.
As outras pacientes puseram, mas Dora, não.
-Por favor Dora, pelo pouco que você me ama e pelo muito que te amo não faça besteiras .
Você vai se curar e seremos felizes, iremos a Europa como você queria.
Farei tudo por você meu amor, tudo.
-Infelizmente você resolveu tarde demais.
Não consegui evitar, ela colocou o revolver na boca e disparou.
Caiu no meu colo, os policiais pegaram as armas as outras pacientes e depois foram embora.
O tiro não foi fatal, pegou no céu da boca e estourou o rosto perto do ouvido.
Ela ainda vivia e olhava para mim, embora sabendo que ela era soro positivo, nem liguei.
Fiquei beijando e alisando seus cabelos ensanguentados.
De manhã quando a ambulância chegou ela deu seu ultimo suspiro.
Não consegui mais trabalhar com musica.
Procurei a entidade que a internou e me propus a trabalhar com crianças com AIDS, adquirida dos pais.
Hoje além das crianças, dou conferências.
Sempre alertando para o perigo do contágio das agulhas e do uso indevido do sexo sem proteção.
Não foram colocados nomes, porque infelizmente, são fatos reais e iriam melindrar pessoas de boa fé.
OripêMachado.
Oripê Machado
Enviado por Oripê Machado em 08/05/2012
Reeditado em 30/05/2012
Código do texto: T3655643
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