Fala que alguém te escuta...
Eu caminhava lentamente pelas ruas da pequena cidade de Chapecó. O sol ardia e parecia queimar meus miolos. E eu imaginava meus miolos queimando, fritos, cheirando à cebola torrada. E meu corpo esfacelado, jogado ao chão, queimando no asfalto, e os abutres sobrevoando, tentando dar o bote. Aquilo me dava uma sensação muito louca. Ao mesmo tempo em que suava de medo, sentia um certo prazer masoquista. Eu queria parar de pensar em morte, em coisas ruins, mas era mais forte que eu. Precisava tomar meus remédios. Fazia dias que não os tomava. Minha mãe já havia me alertado. Estava entrando em desespero. Tentei falar com alguém, mas ninguém parecia se importar com meus problemas. E eu andava a esmo. Putz! Será que ninguém nessa cidade pensa em morrer? Tudo bem que era sexta-feira, mas nem a tequila do fim de noite poderia me salvar. E naquele dia eu não pensava em tomar tequila. Sabia que iria morrer antes. Sim, sentia que estava morrendo.
Entrei numa Lan, sentei em frente a um computador. De repente, lembrei-me de minha amiga, uma que mora em Salvador, ô vida boa. E ela diz que também sofre de depressão e que tem pensamentos loucos como os meus. Ela é louca. Louca, mas eu gosto dela. A gente sempre conversa. Falamos sobre Dorflex, sobre barbitúricos. Ela me fala do sol de Salvador, da temperatura local. Eu falo de minhas dores. Sobre minha morte. Ela fala sobre a dela. Ela me pede Dorflex. E eu prometo mandar. Depois nos despedimos achando que ambos irão morrer e nunca mais vão se falar.
Entrei no MSN. Ela não estava. Como não estava? Putz! Quem iria me ouvir agora? Entrei em pânico! Saí da Lan e avistei um orelhão. Sem nem saber para onde estava discando. Disquei. Alguém atendeu. Era uma voz potente, voz grossa. Não queria falar com homem naquela hora, preferia uma voz feminina. Mas era o que apareceu. Falei.
Eu:
_ Alô?
Ele:
_Alô, amigo. O senhor fala de onde?
Eu:
- Do orelhão... Quer dizer, de Chapecó... Mas tô num orelhão, entende?
Ele:
_ Sim, sei, sei... Continue. Qual o seu problema?
Eu:
_Bem... Não sei como começar...
Ele:
_ Não se preocupe, estou aqui para ajudá-lo... Fale, “fala que eu te escuto”...
Eu não sabia muito o que falar. Então, pensei: ou falo tudo de uma vez ou não falo. E desembestei:
_ Bem, meu nome é Raphael, sou hipocondríaco e, além disso, sofro de síndrome do pânico de morte. Admito ser um doente, sempre acredito ser portador de doenças as quais eu mais temo ou ser a pessoa mais azarada do mundo para poder pegar alguma doença. Para mim, uma gripe é sintoma de AIDS, uma dor de cabeça é sinal de tumor no cérebro, uma falta de ar pode ser um enfisema pulmonar. Eu chamo isto de “paranóia patológica” mas os especialistas denominam síndrome do pânico de morte. Resumindo, síndrome do pânico é um medo excessivo de algo, no meu caso é medo de morrer por alguma doença, e hipocondríaco na linguagem popular é a pessoa que vive à base de remédios, no meu caso anti-inflamatórios, analgésicos até mesmo gel anti-séptico. Tá acompanhando?
Ele:
_ Sim, fala que eu te escuto...
Eu:
_Bem. Sou dependente de anti-depressivo há três anos. Eu o chamo “pílula da felicidade ilusória”, pois sem ela eu vivo o pesadelo da minha vida real cercada de fantasmas imaginários que dão vida à enfermidades inexistentes em meu organismo. E isso faz meu cérebro acreditar em tudo, me faz perder o sono. E, ao me olhar no espelho, imagino minha carne apodrecendo e meu corpo morrendo aos poucos. Me bate um pânico! Meu cérebro nesse momento está sendo dilacerado pelo sol quente e pelos pensamentos mórbidos que me passam. Vou morrer a qualquer momento. Sei que vou. Sou capaz de me repugnar com meu próprio sangue, caso me corte com algum objeto. Tenho medo de não realizar meus sonhos pelo fato de algum dia adquirir uma doença infecto-contagiosa sem cura e saber que estou com meus dias contados. Se é para morrer, que eu morra em uma fração de segundos em algum acidente. É... Tá me ouvindo?
Ele:
_Sim. Fala que eu..
Eu:
_ ...te escuto. Sei. Então, vivo rodeado e entorpecido por remédios, principalmente, pela “pílula da felicidade ilusória” onde cada comprimido me livra deste tormento. Faz alguns dias que não tomo, e por não ter tomado eu não sei se isto é mais uma “paranóia patológica” minha ou se estou prevendo alguma coisa, mas, com certeza, a dúvida agora me surgiu: ser um prisioneiro da química livre do medo, ou ser um prisioneiro do medo livre da química? Eis a questão... E... E... Quero falar com ela, minha amiga de Salvador, e ela não está no MSN. Acho que ela morreu. Será que ela morr...
No momento em que eu falava, passou uma moça em minha frente. Pensei ser ela, minha amiga de Salvador. Não, não era. Filha dela, talvez? Nossa, se fosse a filha dela, eu morreria de vez. Não, não era a filha dela. Essa era loura. Putz. Que mulher bonita, pensei. Mas não podia pensar nisso, meu cérebro estava ocupado pensando em minha morte. Tentei parar de olhar pra moça. Mas ela parou do meu lado e disse:
- Oi, gatinho!
Eu:
- O... oi... A moça está falando comigo?
Moça:
- Ué, e tem mais algum gatinho por aqui?
Eu:
- Bem, sei lá...É que eu tô aqui ao telefone, falando com uma pessoa...
Moça:
- Hum... E vai demorar?
Eu:
- Olha, moça, se quiser usar o orelhão, vai ter de esperar, porque estou aqui, desabafando... Tô contando meus problemas... Olha, quando eu terminar aqui, a moça pode usar o telefone, tá? Agora dá licença...
A moça pareceu não se importar com minhas palavras. Chegou mais perto e ficou me ouvindo. Então, eu continuei o papo com o cara do telefone.
Eu:
- Bom, como eu ia dizendo...É...Opa...Opa...
A moça começou a fazer uns carinhos em meu pescoço.
Eu:
- Que isso, moça?
E o cara do telefone achou que eu estivesse falando com ele.
Ele:
- Sim, “fala que eu te escuto”...
Eu:
- É...Não...M... moça...
Ele:
- Sim?
Eu:
- Ei, que está fazendo?
Ele:
- Bem, eu continuo aqui. “Fala que eu te escuto”.
Eu:
_ Sim, é que... Tem uma moça aqui...
E ele:
_ Sei, e ela é o seu problema??
Eu:
- Oi.... Moça, que isso? Nossa, pare com isso...
E ele:
- Sim, rapaz, livre-se de seus problemas.. Se essa moça é o problema, livre-se dela..
Eu:
- Bem, é... Mas perae, moço...(tu...tu...tu... – barulho de telefone desligado)
Bem, e eu não tinha mais condições de falar ao telefone. Aliás, não tinha condições de nem sair dali. E sol quente ainda queimava. E nós dois, eu e a moça. Fomos pra trás da cabine telefônica. O sol queimava. Eu sentia um calor de doido. Mas desta vez não pensava em morrer.
Putz! Preciso contar isso pra minha amiga de Salvador.
(Fim)
(Adriana Luz - fevereiro de 2005 - * Texto feito "sob encomenda" para Raphael Silveira, um amigo de Santa Catarina.)