Fiel Escudeiro
Cheguei cedo à festa. Sabia que a bebedeira ia ser por conta dos Almeida. Afinal, não é todo dia que o caçula se forma em Medicina na Federal. Todo o dinheiro trabalhado, e muito honestamente guardado pelo pai-Almeida, ia ser destinado a nossa bebedeira. Que alegria, que dia santo!
Peguei uma mesa perto da saída dos garçons. Sabia todas as táticas, ali era a vista pro Éden. Aprendi a ser precavido com o meu pai, ele me abriu uma poupança logo aos dois anos. Devo meu Novo Uno quatro portas a ele. Grande homem, que Deus o tenha!
A tática já tinha sido estabelecida: encher a cara com um bom uísque, deixar a vergonha de lado e sair acompanhado, de preferência bem acompanhado. De taxi claro, meu pai já dizia: Bebeu? Vai de Taxi! Homem de sábias palavras, que Deus o tenha.
Na minha mesa sentou a galera da turma do colégio: o casal Schmidt, o casal Teixeira, a loura Lisiane e a Bebete-Peitão. Ainda estavam por chegar o Buraco e o Castelo, dupla de zaga campeã do interclubes escolar de 79.
Como eu gostava das louras. Como eu gostava de silicone.
Chegou o primeiro garçom, era minha chance.
Agarrei-o com suavidade, pus-me a beira de sua nuca. Com elegância agarrei uma nota de cinquenta, previamente separada, e alojei-a no seu bolso do paletó. Ele percebeu. Pisquei e sorri.
Comunicação estabelecida com sucesso. Meu copo estaria cheio pro resto da noite. Tudo na conta dos Almeida.
A noite andou, papo veio, papo foi, comemos nossa janta e enquanto olhava para o busto de Bebete escutei o barulho do bom uísque adentrando o copo. Lá estava Maciel, meu escudeiro fiel. Piscou e sorriu.
Pisquei e sorri.
Parti pra dança de copo na mão, na roda dos solteiros. Na discussão sobre as obras da Copa com o Buraco e o Castelo consegui posicionar-me ao lado da Lisi, a loura. Afastei-os das minhas presas e ainda entrei em posição de combate. Jogada de mestre.
Ela bebia clericot e contou-me sobre seu novo apartamento, me convidando para um dia conhecê-lo. Aceitei o convite e continuei dançando. Eu danço muito bem.
Chegou o Almeida com seu caçula. Hora do brinde. Virei metade do copo dumaveiz só. Ah, ele merece! Como ta grande o filho do Almeida.
Escutei de novo o uísque bater no copo, seguido de dois estalos provocados pelas novas pedras de gelo que reluziam em meu copo. Dessa vez, tais sons serviram como um incontrolável estímulo para mijar. Cruzei as pernas de modo a segurar a bexiga. Maciel apontou para o banheiro, não longe dali. Pisquei e sorri.
No banheiro, enquanto aproveitava o êxtase do momento, pude escutar vozes do banheiro feminino. Eram Lisi e Bebete-Peitão retocando a maquiagem!
- Como dança bem o Zé, né Bé? Espero que ele não se canse pro que vem depois.
- Ai Lisi, nós vamos levar ele aos céus… Ele é tão fofo. Além do mais, ele merece. Nós merecemos!
Contraí o abdômen a fim de exaurir toda urina que ainda perdurava, pus um pouco de água nos cabelos, olhei para mim no espelho e disse: Tu é o cara! Eu sou o cara.
Voltei. A festa já parecia estar no fim. Não tinha muito tempo para convidar-me pro apartamento da Lisi e invocar a Bebete para acompanhar-nos. Que alegria, que dia santo!
Na pista de dança já introduzi a dança do sanduíche moderada, sem papelão. Maciel me observava atentamente. No fim do Village People trouxe-nos três doses de tequila. Ele era o máximo! Pisquei e sorri, dessa vez já cambaleante.
Quando faltavam apenas umas cinquenta pessoas na festa, convidei-me para conhecer o apartamento. Sabia que era o momento certo, sabia que elas estavam afim. Tinha feito tudo certo.
- Gostei.
- Pode ser.
Beleza Zé. A noite estava feita. Objetivos cumpridos.
Aproximei-me de Maciel, esforçando-me para manter a postura, agradeci pela incontestável parceria e pedi que chamasse uma condução para levar-nos embora. Ele piscou, sorriu e disse:
- É pra já meu caro.
E que sorriso tinha o Maciel.
Quando pisamos na rua e a brisa do outono farroupilha soprou em nossos corpos, dei-me por conta que não me sentia nada bem. Puta que o pariu.
Tontura, enjoo e vista embaçada. Não podia cair! O bom guerreiro não foge à luta! Não podia passar por isso! Não!
- Concentra Zé, Concentra Zé! Disse-me.
Consegui entrar no taxi sem falar nada. Improvisei algumas mímicas e deixei o papo com as garotas, sorte a minha que elas eram boas de papo.
Ainda não tinha condições para abrir a boca, para formar uma frase, precisava me recuperar!
Fechei os olhos, contei até três e nada. Respirei pelo nariz, soltei pela boca e nada. Nada parecia adiantar. Não conhecia nenhuma outra tática. Isso não podia estar acontecendo. Reage Zé!
Enquanto isso, as duas companheiras conversavam à milhão com o taxista. Conversaram sobre a novela das sete, sobre moda, sobre música, sobre o preço do taxi, sobre a festa.
Como era longe o apartamento da Lisi.
De repente, senti um clarão invadir minha mente. Será Deus? Será chegada a minha hora? Será os céus recebendo-me da vida?
Não.
Era o sol invadindo meus olhos. Quando consegui recuperar minha visão, sentindo uma tremenda dor de cabeça, tentei localizar-me.
Estava dentro de um taxi, estacionado na rua. Na frente de um prédio branco, parecia novo. Puta que o pariu, dei-me por conta: dormi no táxi.
Tentei sair, as portas estavam trancadas. Tentei manter a calma, dizem ser importante nessas horas. Olhei atentamente para o interior do taxi a procura de informações valiosas, encontrei o crachá de identificação do motorista que dizia: Maciel Loureiro da Silva. A foto era de um cara igualzinho ao garçom da festa.
Puta que o pariu, dei-me por conta: era o garçom da festa.
Sentindo a mais profunda decepção já conhecida por alguém, olhei-me no retrovisor e vi que minha testa estava rabiscada de batom com um número de telefone.
Liguei. Alguém desligou na minha cara. Um minuto depois estava saindo do prédio, e se aproximando do Taxi o Maciel, meu garçom.
Piscou e sorriu.
Pisquei.