Sublime Canção...
Alguma coisa está acontecendo comigo... E eu não sei o que é... Se bem que eu nunca soube realmente nada a meu respeito...
Já expliquei ( e explico) didaticamente e diariamente tantos assuntos... O porquê de o porquê ter tantos porquês, por exemplo. Por que a crase existe, por que o pronome oblíquo está ali, ao lado do “não”... O que foi o Mal do Século... O que são as Cantigas de Amor, as de Amigo... O fenômeno da heteronímia em Fernando Pessoa... As inúmeras escolas literárias... A coesão dentro de um texto... O parágrafo dissertativo, descritivo, narrativo (enjoativo...)...
Já discuti com autodidatas, diplomatas, iconoclastas... Escritores, professores, vendedores... Já fiz altas palestras a amigos sobre os segredos de um chantilly... Da massa leve de um rocambole... Do toque “Mc Donalds” de uma batata frita, do sabor de um capuccino, do molho escuro de um sukiaki ou do molho branco de um “Silvimour”...
Já cuidei de bebês... Mais ainda, já tive bebês... E já expliquei para eles por que o céu é azul e por que o sol é amarelo... Depois, expliquei-lhes de onde vieram... Também, ensinei-lhes a fazer brigadeiro... A amarem os livros... A dizerem “obrigado”, “por favor”, “com licença”... A andarem de bicicleta... A rezarem o terço... Amar a DEUS... A Serem "seres humanos"...
Porém, por mais que eu tente, não consigo explicar o que há de mais próximo a mim: eu mesma. E, por não saber explicar, penso ser eu mesma a coisa mais distante de mim...
Acho que são os eflúvios do mês de Janeiro... Não sei, ele sempre exerceu uma força estranha aos meus sentidos... Desde quando eu era criança... O primeiro mês do ano sempre me trouxe sentimentos fora do comum. Tudo, nessa época, mexe exageradamente comigo...
Outro dia, numa dessas tardes de Janeiro, li uma crônica de Lya Luft (Canção das Mulheres), do livro “Pensar é transgredir”... Ganhei-o de uma amiga no meu aniversário. Bem, confesso que já li milhares de crônicas em minha vida. E muitas me tocaram... Mas, essa agora, lida num dia qualquer desse mês... Não sei o que houve... Na verdade, não sei nem dizer o que senti. Apenas fiquei em silêncio por algumas horas. Um silêncio que não explicava nada, mas, ao mesmo tempo, gritava aos meus ouvidos. E, por ouvir esse silêncio gritando, minha mente paralisou. Eu fiquei ali, estática, durante horas, olhando não sei para onde, ouvindo-o...
Depois de algum tempo, lembro-me de que fiquei repassando o título diversas vezes... “Canção das mulheres”... Então, lembrei-me de outro livro que estou lendo (é, leio vários livros ao mesmo tempo), “Sublime Canção da Índia (ou Bhagavad Gita)”, um livro sagrado hinduísta (também presente de aniversário). Por que fiz a associação, não sei... Mas não pude deixar de pensar na relação religião-oração-mandamento-canção...
Sim, o texto de Lya Luft soou-me como algo sagrado. Uma crônica-oração que, se lida ou falada repetidas vezes, pode realmente se transformar numa canção. “Canção das Mulheres”...
E eu desejei ter escrito algo assim... Não com a pretensão de que os meus escritos fossem algo para ou de todas as mulheres. Não gosto da ideia de escrever pensando no sentimento feminino coletivo... Quem é que sabe se todas as mulheres sentem o mesmo que sinto? Quem é que sabe se todas elas passam pelo mesmo que passo? Quem é que sabe se todas são iguais? E quem é que pode dizer se todas elas são diferentes? Não sei o que vai dentro de ninguém... Nem mesmo de mim... Mas sei que gostaria de fazer uma oração, uma canção como a de Lya... E que a meus ouvidos, ela soasse como algo sagrado...
Se pudesse, se eu conseguisse fazer, o que poderia ser chamado de “Cantos”, por mim, seria mais ou menos assim:
Que eu possa amar, sem que tenha necessidade de saber se o outro me ama;
Que o outro possa me amar, sem que tenha necessidade de saber se eu o amo também;
Que eu possa me amar, sem achar que estou sendo egoísta ou que esteja fazendo alguém sofrer;
Que eu possa me doar, sem que o “beneficiado” me cobre por essa doação;
Que eu possa ter medo, todos os medos do mundo, sem que isso me paralise;
Que eu possa me paralisar, sem ter a sensação de que estou perdendo alguma coisa;
Que eu possa perder alguma coisa, sem que fique me martirizando por séculos;
Que eu possa ganhar algo, sem que eu me sinta acanhada por isso;
Que eu possa pensar, sem dar explicações sobre o que penso, ou por que penso;
Que eu possa não pensar, sem explicar por que não tenho opinião formada ainda sobre algo;
Que eu possa passar milênios sem falar com alguém e, de repente, lembrar-me dele, ligar e, no lugar de um “até que enfim”, eu ouça um “que bom que ligou”;
Que eu possa ter amigos, sem que sinta a obrigação de fazer com que meus amigos sejam amigos de meus amigos;
Que eu possa dormir demais ou ter insônias consecutivas, sem que isso seja interpretado como fuga de alguma coisa;
Que eu possa sair sem rumo, sem que isso pareça que eu esteja perdida no mundo;
Que eu acredite em minhas ideias, sem desistir na primeira ressalva que encontrar;
Que eu mude de ideia, sem que isso pareça um ato volúvel;
Que eu possa ser individual, sem que isso soe como um desejo de abandonar meu coletivo;
Que eu possa escolher se quero ir, sem achar que se eu for perderei algo;
Que eu possa resolver ficar, sem que isso signifique, para mim, angústia ou covardia;
Que eu possa escrever, sem que pareça que o escrito é o que vai na minha alma;
Que eu tenha alma...
E que ela possa se cansar, chorar, silenciar, gritar, despir-se, rasgar-se... Rezar... Eternizar-se, enfim... E, acima de tudo, acreditar que, para ela, haverá realmente uma Sublime Canção...Em algum lugar...
É isso...
(Adriana Luz - texto escrito em janeiro de 2005)
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