Petúnia Negra

Petúnia herdara de seu pai a Paz Eterna, a única funerária da cidade. Negócio milionário, já que, infelizmente, morrer não é daquelas coisas que a gente pode decidir não fazer para economizar dinheiro, como ir a restaurantes, viajar para o estrangeiro ou comprar um carro. Morre-se e pronto. Dona Morte não quer nem saber. Faz o serviço e vai embora.

Era aí que entrava a Paz Eterna, com seus planos assistenciais feitos sob medida para vários tipos de bolsos. Só de caixões a empresa tinha mais de duzentos modelos, dos mais simples (feitos com chapas de madeirite, sem acabamento interno) aos mais sofisticados (verdadeiros sarcófagos faraônicos). Era um entra e sai o dia inteiro na empresa. Pelo menos trinta defuntos eram empacotados todos os dias por Petúnia, que também investia em outros ramos de negócio, para aumentar o número de clientes da funerária – tinha inaugurado recentemente uma concessionária de motos e uma distribuidora de bebidas e cigarros, e pensava também na possibilidade de um investimento pesado no ramo de lanches rápidos, onde produziria, a preços populares, verdadeiras bombas de açúcar e gordura saturada.

Além disso, para fortalecer ainda mais as finanças da Paz Eterna, Petúnia trabalhava em conluio com alguns médicos inescrupulosos (que controlavam o hospital local) visando aumentar o número de defuntos na cidade. Com a sua grande influência política e as amizades que mantinha com pessoas poderosas na região, Petúnia acobertava a máfia dos médicos, que desviava recursos da Saúde e transformava o hospital num verdadeiro playground para os seus divertimentos sádicos. E sempre que um pobre coitado se encontrava prestes a dar o último suspiro num dos vários corredores da Santa Casa, um dos mafiosos ligava para a equipe de Petúnia, que imediatamente enviava um representante da Paz Eterna para o local.

Petúnia acompanhava com muito entusiasmo as estatísticas de acidentes de motos com vítimas fatais, de mortes relacionadas ao uso de álcool e cigarro (infartos fulminantes, câncer de pulmão, garganta e laringe), etc. Cada aumento significativo nos números locais era comemorado com uma festa de arromba para os funcionários de todas as suas empresas, que se reuniam no enorme salão de recepções da Paz Eterna.

Uma noite, porém, Petúnia teve um sonho que mudou completamente a sua vida. Nele ela vagava nua por um lamaçal fedorento, com fortes dores em todo o corpo. O céu era cinza escuro. O vento de um frio cortante. O ar fedia a carne podre e fezes.

Logo à sua frente ela viu um grupo de seres monstruosos, avançando lentamente pela lama, aos gritos, alguns chorando desesperados, com as mãos erguidas, em súplica.

Ao se aproximar mais, Petúnia notou que eram seres humanos, e levou um susto ao ver que um deles era seu falecido pai. Ela gritou “pai”, mas ele não respondeu. Parecia um animal. Tinha perdido todos os dentes e seus olhos eram como os de um cão raivoso, vermelhos e cheios de ódio.

De repente, do nada, apareceu um porco gigante, caminhando como um homem, com uma enorme cesta de bambu pendurada numa de suas patas dianteiras. Os seres monstruosos que avançavam pelo lamaçal pararam e começaram a urrar como animais desesperados, apontando para a cesta. O porco então foi tirando de dentro dela pedaços de carne humana (mãos, pés, pernas, cabeças, vísceras), que jogava para os animais, alimentando-os. Petúnia quase desmaiou ao ver seu pai abocanhar um pé apodrecido, arrancando com suas gengivas acinzentadas pequenas lascas de carne, que se soltavam facilmente dos ossos, como suã cozida além do ponto. (O barulho que ele fazia com a boca era repugnante).

De repente, o porco grunhiu para Petúnia. Ela o olhou diretamente nos olhos e percebeu que ele sorria – um sorriso irônico e zombeteiro. O bicho grunhiu de novo, chamando-a, e com a rapidez de um raio jogou-lhe um pedaço de carne estragada: uma massa compacta, redonda e escura. Era uma cabeça de homem, com os cabelos pretos cortados bem curtos, sujos de lama, que caiu aos pés de Petúnia com a face virada para cima, os olhos esbugalhados, a boca de dentes encardidos rindo para ela. Era um rapaz que ela conhecia, filho de uma de suas faxineiras, que tinha morrido como um animal no corredor do hospital havia alguns meses, sem atendimento, sem remédio, sem nada.

Petúnia acordou suando frio e, desesperada, saiu correndo em direção a uma igreja. Atravessou cambaleante toda a extensão do templo e ajoelhou-se em frente ao altar para pedir perdão a Deus, coisa que ela nunca tinha feito na vida.

Saiu aliviada, aproximando-se de um banco na praça, onde uma garotinha (que devia ter no máximo cinco ou seis anos) brincava com uma boneca, sozinha. Petúnia sentou-se ao seu lado. Era uma menina linda, de olhos azuis, pele clara e cabelo preto brilhante.

Sentindo-se perdoada por Deus e disposta a mudar o rumo de sua vida, Petúnia chegou até a pensar na possibilidade de ter um filho... Carinhosamente passou a mão na cabeça da menina e perguntou: “Como é seu nome, querida?”. Como resposta, a menina olhou firme nos olhos de Petúnia e grunhiu: “oinc, oinc”. Era Dona Morte disfarçada.

Na mesma hora Petúnia teve um infarto, e, no dia seguinte, como qualquer um, entrou para a estatística de mortes por problemas cardiovasculares.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 04/05/2012
Código do texto: T3649622
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