Brincando com fogo

Há dias que não sei porque é que saio de casa. Tudo parece errado, tudo parece turvo, tudo parece cair na minha cabeça. Não há chapéu que resista! Parece piada mal contada, mal resolvida. Minha cama é tão boa!

Mas hoje levantei cedo, peguei o caminho do trabalho como sempre faço. O trânsito estava confuso, muita chuva, muitas pessoas querendo chegar a seus locais de destino mais cedo do que o de costume, provavelmente para assegurarem uma boa vaga no estacionamento que anda apinhado de carros novos. É bom frisar que hoje é véspera de feriado. Buzinavam, acendiam os faróis, davam sinais com os dedos, freavam com violência... um horror! Acho que estava atrapalhando o andar da carruagem. Quando cheguei o porteiro também estava mal comportado. Imaginei que havia levado uma dura da mulher. Segundo ele de santa, ela só tem o apelido.

Mas o que tem me assustado nesta complexidade cotidiana são os fatos que vão se atropelando, acumulando, ganhando novas formas e contextos dentro de mim. Estou inquieto com os movimentos sociais que estão aflorando em nosso país. Esses redemoinhos desmiolados que nos carregam de um lado para outro, sem nem ao menos nos dar a opção de ficarmos parados. Parecem não ter sossego! Ainda não aprendi a lidar com essas nuances que nos cercam no dia a dia.

Quando vejo na televisão as passeatas gays e os movimentos religiosos com mais de um milhão de pessoas, fico assustado, sem dúvida são acontecimentos colossais, movimentam milhões e milhões de reais e pessoas todos os anos nas principais cidades do planeta.

Contrastando com essas multidões, o movimento solitário de uma garota de programa gerou uma polêmica danada entre os nossos intelectuais. Meses atrás ela foi a maior vendedora de livros do país. Fiquei de cara! Vendeu em poucos meses cento e cinquenta mil exemplares do seu livro, para mim, uma façanha digna de registro, digna de louvor. Ainda não tive a oportunidade de ler os seus escritos, mas pelos comentários que li e por entrevistas que assisti pela televisão, deu para imaginar do que se trata.

O sexo entre nós ainda têm tabus do tempo das caravelas, por isso, os leitores ficaram maravilhados com o que ela relatou em sua obra. No início pensei que ela seria apedrejada pela ala feminina, mas o que aconteceu foi exatamente o contrário, ela foi idolatrada por ter relatado momentos de sua intimidade, os quais deveriam ser normais para todas as pessoas, casadas ou não, homens ou mulheres. O que ela conta nada mais é do que o que todos sabem e sonham fazer. Este é o trabalho dela, no meu entender, um trabalho como outro qualquer. Cada um que desempenhe o seu papel da maneira que achar melhor. Garotas como esta, estão ganhando espaço na nossa sociedade. Já não são chamadas vulgarmente de prostitutas, até porque o nível de escolaridade e o requinte dos encontros são bem mais sofisticados do que o daquelas que ganhavam a vida vendendo prazer em casas de ponta de rua do século passado, aquelas que usavam a luz vermelha como chamariz, como referência de uma classe social estigmatizada.

A maioria das mulheres são levadas pelas circunstâncias da vida a cuidar dos filhos, das finanças da casa, das roupas, dos maridos, isto quando não são verdadeiramente os pais e as mães, ao mesmo tempo. Este malabarismo leva as mulheres ao desgaste emocional e físico, causando prejuízos para os casais que se veem desgastados quando vão para a cama carregando a temida preguiça sexual. Provavelmente um dos males deste século.

As garotas de programa estão ganhando terreno porque descobriram que o corpo pode ser usado em sua totalidade, sem os medos dos pecados que carregamos desde criança. Pecados que colocaram em nossas cabeças, em nossas ideias e que, agora, são difíceis de serem retirados ou vencidos.

As mulheres de agora, terão que fazer as duas coisas ao mesmo tempo antes que seja tarde demais: serem donas de casa e amantes, “tarefas” que elas raramente conseguem fazer. Esta é uma empreitada maiúscula, mediante os parcos rendimentos que os seus maridos ganham na maioria das vezes. A luta pela sobrevivência ganhou dimensões gigantescas, exigindo do casal obrigações iguais e constantes.

Esses percalços fazem do nosso cotidiano uma Torre de Babel. A quantidade de pessoas infelizes, mal amadas e mal resolvidas, que ora fazem parte do rol dos seres humanos que estão próximos de mim - coisa que antes não via, ou fazia de conta que não enxergava e que, infelizmente, agora não posso negar tal existência - é enorme. São tantos os descasados, os viciados, os drogados, os homossexuais, que nem sei quem é que está certo, se eu que sou totalmente careta ou se é a garota de programa campeã de venda de livros. Vou voltar pra minha casa, quem sabe lá, com a cabeça no travesseiro, eu encontre uma resposta para este meu questionamento. Ah, vou fazer melhor: “Vou embora pra Pasárgada, lá sou amigo do rei.” Só não sei se terei a Mulher que quero, na cama que escolherei.

Pedro Cardoso DF
Enviado por Pedro Cardoso DF em 31/01/2007
Reeditado em 11/10/2017
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