A CRIAÇÃO ESTÁ NA UTI
Absorta, observo as gotas minúsculas que vão caindo e escorrendo pela vidraça. Algumas respingam em mim e vão umidecendo meus pensamentos. Estes, levam-me pra longe, numa viagem de uma vida inteira... As imagens que vão surgindo, parece refrigerar a minha alma e uma chuva mais intensa continua caindo dentro de mim. A mesma que vai impulsionar o monjolinho, caprichosamente arquitetado e assentado a beira do riacho de águas cristalinas e tão mágicas. E o toc-toc , bate ecoando felicidade pelos ares... Lá está para sempre o menino, mestre da engenhoca, habilidade que herdara de seus ancestrais.
A chuva continua... As águas saem de seus esconderijos. Algumas espreitam timidamente tudo ao redor... O céu, não está cinzento, mas também não está azul, como nos dias ensolarados...
E as águas passeiam... Escapam e somem pelas veredas... Ressurgem nas manhãs orvalhadas, perfumadas pela essência da terra. As mais apressadas apostam corrida, desafiam as escarpas e os rochedos, deixando pelo caminho notas musicais de todas as cores...
Entre arbustos e arvoredos, se aninham nos leitos dos rios, nos lagos e lagoas. A mesma, que vai banhar as crianças candidatos à puberdade. Estas saltam os penhascos sem medo e desvestidas de juízo, vestindo apenas a adrenalina da meninice feliz.... Mergulham fundo, dentro delas mesmas... Para estas, talvez seja a única diversão da semana. A piscina sonhada, lá é generosa oferenda da mãe natureza, que sem cobrança, não apenas as contempla, como também as afaga. As gotas que de seus corpos inocentes escorrem, escoam pelo ralo da terra, e prosseguem numa missão incansável... Missão de idas e vindas, de juntar anos e separar milênios. Missão de regar a criação. Meus pensamentos vão ficando encharcados... Molhados pela alegria de correr pelos quintais...
Enquanto as roupas rodopiam ao vento nos varais, as árvores dançam lambada e as nuvens tentam se esconder do vento. Balançam, balançam e se movimentam freneticamente...
É festa no céu, é festa na terra. A mesma, que sustenta os cafezais, os canaviais e tantas outras plantações. A vida está sendo molhada. Quanta felicidade !
E a chuva cai... Vai molhando o chão batido, o chão pisado pelo gado, os trilhos da linha férrea e a estrada também. Outras, invasoras, vão chegando sem nem mesmo pedir licença. Assustadoras, avançam os quintais ao som dos vendavais.
O rio transborda. Os bueiros também. Tingida por tons escuros, não mais insípida, não mais tão bela. Toma posse. Traz de tudo um pouco. Deixa lixo, deixa lodo, deixa gravetos e os galhos... Galhos verdes, galhos secos, galhos molhados de fome e encharcados de tristeza.
O dia chora. As crianças também. Não é dia de brincadeira.
O céu que assiste tudo, convida o sol. É dia de mutirão. É preciso insolação.
O trem precisa trafegar nos trilhos de ferro, nos trilhos da vida também.
Partem as águas intrometidas, cuja missão era também alagar os sentimentos de partilha nos corações caatingueiros.
O entardecer traz o vento... Uma pipa minúscula o convida para brincar. É preciso distrair as crianças.
A natureza levou as águas para algum lugar... Mas qual? Em qual esconderijo estaria?
Em quanto isto, a criança definha... Sonha com a panela cheia, com o horizonte transbordando, com a água escorrendo fria pela testa, pelo relevo humano. Seus olhos choram secamente, estão áridos, querem o colo tranqüilo das águas. Águas do São Francisco, das serras tão longe dali, do outro lado do mundo...
Do outro lado do mundo? No outro lado do mundo.
E as águas que estavam dormindo, acordaram assustadas, com solavancos no berço, sem tempo de reação. O chão treme. A maresia foge. A terra geme. A floresta tomba. As geleiras sucumbem. Os oceanos espasmam em cólicas. O mar vomita fúria, deixando as marcas e gosto do fel deixando também os sinais de alerta: A CRIAÇÃO ESTÁ NA UTI.