Regina, mulher-loba do Brasil
REGINA, MULHER-LOBA DO BRASIL
(crônica publicada no jornal "Diário Catarinense" de 02.05.12)
Lobas são extremamente ciosas dos seus filhotes. Ou então: lobas são selvagemente ciosas. São mansas e pacíficas enquanto o mundo se lhes apresenta manso e pacífico. O problema é que elas se dão ao hábito de pensar e, ao pensar, tomam partido e definem-se criticamente frente a esse mesmo mundo. E ele que se comporte! Nem sonhe em sair da linha!
Os filhotes da Regina são os seus alunos, a Literatura (mais necessária e carinhosamente aquela próxima, feita em Santa Catarina) e, por consequência dos cuidados anteriores, os escritores catarinenses. Estes filhotes é que lhe importam.
Regina, loba, preocupa-se. Tem consciência política (não se trata aqui de partido político, é importante deixar bem claro), posiciona-se filosoficamente no meio em que vive, em que trabalha com uma dignidade que muita gente não tem para mostrar, no meio em que paga seus impostos como penitência para viver e participar da sua rua, do seu bairro, da sua cidade.
Com esse dinheiro, com seu imposto, paga o salário de vereadores e servidores públicos que têm a obrigação de considerar suas opiniões, ao invés de, numa forma simplista, demagógica e autoritária, ameaçá-la de processo judicial por "entravar a máquina pública" ao impedir, com sua força de mulher e sua coragem de ser humano, a "limpeza de um terreno público" no Estreito.
O terreno público em questão é uma área com árvores que abriga um sítio arqueológico protegido pelo IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Acontece que a gerente da loja vizinha ao sítio, loja que vende a mais famosa marca de motos do mundo, decidiu limpar o terreno público ao lado. "Vive cheio de usuários de droga", foi a bandeira que ela levantou. Como o local estaria "desocupado", dita senhora dá a qualquer um o direito de supor que ela imaginava abrir ali um espaço informal e gratuito para servir de estacionamento exclusivo aos seus abastados clientes. Já que a loja naturalmente será contribuinte dos cofres públicos, a gerente achou-se no direito de acionar seus "contatos", de maneira informal (por que tanta burocracia, não é mesmo?), a fim de conseguir autorização para a limpeza - limpeza arrasadora com patrola, como um corte de cabelo com máquina zero.
Um vereador, que já deixara a secretaria municipal ligada ao caso para candidatar-se à reeleição, autorizou verbalmente o desmate, o desmonte, a "limpeza" de tolerância zero com o terreno - atribuição e autoridade de que ele já não mais dispunha, da mesma forma que não disporia ainda que estivesse no exercício do cargo, simplesmente por tratar-se de um sítio arqueológico: um patrimônio público (não do poder público) de interesse histórico.
Regina Brasil, mulher-loba, escolada, que dá um monte de aulas, educa pessoas e ensina-lhes cidadania, desconfiou quando retiraram a tela que protegia o terreno. No dia seguinte, bem cedo, a patrola iniciou a devastação. A professora correu, pôs-se à frente da máquina e impediu que o crime se consumasse em sua totalidade. Ela foi fotografada (as fotos saíram na imprensa e circulam pelos caminhos da internet), aplaudida e consagrada como heroína.
Mas as pressões sobre ela aumentam, e serão maiores assim que baixar a poeira da publicidade que envolve o seu ato. Como a ameaçou o pessoal da loja de motos, o que a forçou a registrar Boletim de Ocorrência na delegacia do bairro, "Você não sabe do que somos capazes! Você tem certeza que quer essa incomodação para o resto dos seus dias?"
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Amilcar Neves é escritor com oito livros de ficção publicados.
"Não podemos fazer o que for necessário. Temos que fazer o que for certo."
Gary Bostwick, advogado, citado por Janet Malcolm em "O Jornalista e o Assassino".