UM OFFICE BOY NA CIDADE DE SÃO PAULO NA DÉCADA DE 70.
No ano de 1971, eu era um garoto que morava na periferia, tinha quatorze anos de idade, era pobre de nascimento e tinha apenas o ginásio incompleto, então não restava-me outra alternativa a não ser começar a trabalhar para levar a namoradinha ao cinema nos finais de semana e comer cachorro quente com tubaina na padaria do bairro com os amigos Israel e Luizão.
Papai levou-me até o endereço citado no minúsculo anúncio do jornal comprado no domingo, apertou o botão do elevador, desejou-me boa sorte e foi embora.
As pernas tremiam e o suor começou a descer pela testa, estava muito quente e eu muito nervoso. Desci no 21º andar, super enjoado pelo trajeto do elevador, o coração disparado e a carteira de trabalho em branco.
Apresentei-me à recepcionista um pouco trêmulo, inseguro, bastante ansioso, mas com muita esperança em conseguir a vaga e não decepcionar Papai.
Fiquei aguardando eternos minutos ao lado de jovens apreensivos, trajando roupas simples, denunciando-os que também eram moradores da periferia o que deu-me um pouco mais de tranqüilidade.
Fui chamado pela recepcionista que conduziu-me até uma sala onde existia alguns móveis estilo colonial, muitos telefones, uma enorme pintura de eucaliptos na parede e eu diante do Sr.Rubens, gerente de uma Cia.de Seguros, um senhor obeso, aparência de pessoa seríssima, honesta e rica, muita rica.
O odor agradabilíssimo do perfume do Sr.Rubens invadia a sala, sem pedir licença ao nosso olfato. Não sabia se olhava a sala ou o Sr.Rubens, estava encantado com tanto luxo e beleza, tão desconhecidos aos meus olhos.
O Sr.Rubens pediu-me educadamente para eu sentar numa poltrona estilo século XVIII, senti vontade de deitar, tamanho era o conforto, mas mantive-me ereto e atento. Pigarreou algumas vezes e dirigiu-me um olhar perscrutador, examinando-me dos pés a cabeça, muito sério e com uma voz grossa perguntou-me se eu conhecia as ruas do centro da cidade de São Paulo. Senti o meu rosto enrubescer-se de vergonha em mentir e respondi tartamudeando em poucas palavras que conhecia todas as ruas, sem exceção.
"Ah, se ele soubesse que eu mal sabia retornar para minha casa, no longínquo bairro da Cidade A.E.Carvalho, na zona Leste!" teria perdido o emprego, com certeza.
Após algumas perguntas sobre minha vida, minha família, meus estudos e certificar-se que eu realmente precisava trabalhar para ajudar meus pais, levantou-se e dirigiu-se a um armário, abriu-o,mexeu em alguns papéis e retirou uma maleta preta, estilo 007, caminhou em minha direção e depositou-a sobre minhas pernas e pediu-me para passar na Seção de Contabilidade e retirar o valor em dinheiro referente a duas passagens e ir para o Bairro da Lapa.
Deu-me o endereço e pediu que entregasse alguns papéis num escritório de advocacia, desejou-me boa sorte e sentou-se pesadamente na sua confortável cadeira e acendeu um charuto enorme.
Agradeci, pedi licença e sai um pouco atordoado com a mistura dos odores, do perfume e do charuto, transpirando e sem a mínima noção de onde ficava o Bairro da Lapa.
Tinha conseguido o emprego !
Peguei o dinheiro com a Dona Joana, uma senhora idosa, muito simpática e amável. Peguei a maleta 007 e sai um tanto orgulhoso e fiquei aguardando o elevador e pensando como faria para chegar até a Lapa."Onde ficava a Lapa? Era longe? Seria igual ao meu querido bairro da Cidade A.E.Carvalho?". Deixei de divagações quando escutei um som e acendeu uma lâmpada verde sobre a porta do elevador, abriu a porta do elevador e o ascensorista falou com uma voz irritada: Dessssce!
Fazia um calor insuportável, parei numa banca de Jornal na Praça Padre Manoel da Nóbrega e perguntei humildemente para o jornaleiro como fazia para chegar na Rua Coreolano no Bairro da Lapa. Explicou-me que deveria pegar um ônibus que vinha da Penha e passava na Rua XV de Novembro. Era o famigerado Penha-Lapa.
Fiquei esperando o ônibus por longos minutos embaixo de um Sol escaldante. Estava maravilhado com toda aquela movimentação: carros, ônibus, pessoas passando de um lado para o outro, guardas apitando incessantemente. Olhava para os prédios, olhava para os ônibus, para as pessoas e tinha vontade de chorar. Avistei o ônibus e fiz sinal para que o mesmo parasse e quando olhei mais atentamente fiquei estupefato, parecia que transportava toda a Metrópole, estava lotadíssimo!
Entre um empurrão e outro consegui com muito esforço subir os dois primeiros degraus, a porta fechou e fiquei prensado entre a porta traseira e um senhor muito gordo e suado. Senti vontade de descer no próximo ponto, devolver a maleta 007 para o Sr.Rubens e voltar para minha casa.Pensei:"Mas o que falaria para Papai? E a vergonha de não ser capaz de conseguir o emprego? Engoli algumas salivas, passei a mão pela testa suada e odiei o gordo, o onibus,o Sr.Rubens e Papai.Era necessário conseguir o primeiro emprego custasse o que custasse, então tinha que suportar aquele "inferno".
Procurei o endereço e encontrei-o com alguma facilidade, entreguei os papéis e peguei o ônibus de volta e cheguei depois de duas horas, muito amarrotado, cansado, suado, mas muito orgulhoso e feliz por ter cumprido minha primeira tarefa. Estava torcendo para ser dispensado e retornar no outro dia. Ledo engano! O Sr.Rubens pediu-me para ir para Vila Guilherme, numa transportadora e retirar algumas apólices de seguro, fazia parte do meu teste.
Novamente perguntei ao velhinho jornaleiro como fazia para chegar ao endereço, deu-me todas as instruções, peguei o ônibus no Parque Dom Pedro II, fui e voltei em menos de duas horas.
Entreguei as apólices para o Senhor Rubens. Olhou-me aprovadamente, deixou transparecer um sorriso de satisfação, apertou-me a mão e disse-me: Parabéns garoto! você começa a trabalhar amanhã, pode trazer todos os documentos que iremos registrá-lo. Ah, não esqueça de vir de terno e gravata!
Não contive-me de alegria, não sabia se sorria ou chorava, tamanha a minha felicidade e tristeza em encarar o Penha-Lapa de novo e ainda ter que usar terno e gravata. Nunca tinha usado terno e gravata em toda minha vida!
No dia posterior, cheguei meia hora antes, abandonado dentro de um terno azul claro e gravata vermelha que tinha emprestado do meu amigo Israel com a promessa de devolver nos finais de semana para ele ir à igreja e devolve-lo definitivamente assim que recebesse meu primeiro pagamento.
Dei todos os documentos para Dona Joana e ela apresentou-me o itinerário completo dos lugares onde deveria ir. Quase chorei em pensar em pegar trinta e dois ônibus lotadissímos como aquele Penha-Lapa. Felizmente não era somente o Penha-Lapa, existiam outros ônibus menos lotados.
Peguei o dinheiro referente a trinta e duas passagens, a maleta 007, um guia da cidade e corajosamente fui enfrentar meu primeiro dia de Office-Boy. Passei nas Lojas Americanas da Rua Direita para comprar algumas balas e doces e fui pegar a primeira condução na Praça Clovis Beviláqua.
Meu trabalho consistia em retirar algumas apólices de seguro em transportadoras em doze bairros diferentes. Alguns bairros eram tão distantes que minha memória já não os alcançam mais.
Naquela época já existia grandes enchentes na cidade e lembro-me atravessando a Av.Brás Leme com a maleta preta 007 do Sr.Rubens sobre a cabeça, pois se deixasse molhar os documentos era demissão na certa.
No começo foi muito difícil, mas com o passar dos dias tudo tornou-se uma grande aventura. Encarava tudo aquilo como uma grande diversão e tudo era motivo para festa, pois adorava ver as pessoas andando apressadamente e era com muita alegria e entusiasmo que contava a meus amigos da escola as aventuras do cotidiano. Estudava no período noturno no Ginásio Estadual Cidade de Hiroshima, no Parque do Carmo, em Itaquera.
Foi meu primeiro emprego e orgulhava-me em trabalhar no centro da maior cidade da América Latina. Adorava jogar Fliperama, pegar as seções da tarde nos antigos cinemas do centro, às vezes parava para observar os "cantadores", e ilustres "trovadores", Homem da cobra vendendo suas milagrosas pomadas para todas as enfermidades do Mundo na Praça da Sé e comer o tradicional sanduíche de churrasco grego no Largo Paissandú, que ficava o dia todo rodando, rodando, assim como nós office boys daquela época.
Sentia muito orgulho em ser paulistano e foi minha primeira grande paixão pela cidade de São Paulo, depois viriam outras. Era um sofrimento gostoso, de estar sendo útil, de poder ajudar minha cidade, de ver e sentir novos lugares, novos aromas, novas pessoas, mas nenhum dia era igual ao outro, sempre tinha novidades. Imaginem que nós oficce boys chegávamos a promover um campeonato de futebol em pleno Pátio do Colégio com juiz, torcida e muita alegria. Era simplesmente maravilhoso!
Muito obrigado papai, muito obrigado Sr.Rubens, muito obrigado São Paulo por dar-me a oportunidade de tornar-me homem, responsável, destemido e acima de tudo um cidadão que aprendeu a amar essa cidade desde aquela época e continuar amando-a até os dias de hoje.