Opus 23. No Salão do Rei das Montanhas
Opus 23. No Salão do Rei das Montanhas.
Ou
Sonhos, remédios, medo e morte... e “A Mãe”
(Renan Flores)
Minha cabeça está uma verdadeira bagunça. Está cada vez mais difícil discernir o que é real e o que é fantasia. O sono está a cada dia maior e sonhos mais intensos. Acordo e fico um tempo travado, sem saber onde estou. Os sonhos estão cada vez mais reais. A realidade muitas vezes é invadida pelos sonhos, e isso detona meu raciocínio lógico. A pergunta da vez é: será que tudo o que eu aprendi e assimilei como “real” até hoje é verdadeiramente real? Os sonhos são eventos paralelos sem qualquer tipo de ligação ou interferência com a realidade? E o que é “A Mãe”?
Essa crônica procura esclarecer, de alguma forma, como eu cheguei ao meu atual estado mental e meu encontro com a entidade conhecida como “A Mãe”.
Solidão. Nenhum outro ser humano na Terra que não tenha experimentando os mesmos sentimentos que eu tenho experimentado ultimamente pode afirmar que conhece a solidão. Posso afirmar com veemência que não tenho amigos. E a culpa é só minha. Eu tinha amigos, bons amigos. Mas alguma coisa dentro de mim ordenou “expulse-os”. Não tive forças para lutar contra isso. De um em um, destruí todos os vínculos de amizade que eu demorei anos pra construir.
Primeiro foi Cíntia, depois Tamara. Denis, Zé e Alexandre no time dos homens. A mais difícil e dolorida de todas foi Cristiane. Essa era minha melhor amiga, a pessoa que eu mais amava no mundo. A única pessoa com quem eu me sentia verdadeiramente bem. Foram meses de trabalho intenso e dolorido, mas no fim, assim como todos os outros, ela também não resistiu e se rompeu.
As únicas pessoas com quem ainda converso são os caras da minha banda e meu aluno, que também é um grande amigo (dou aulas de baixo elétrico). Mas já bolei estratégias para estes também. Outras pessoas com quem converso são pessoas da faculdade, e única e estritamente sobre trabalhos. Na verdade, nunca consegui fazer amizade na faculdade. Mesmo agora, praticamente no último semestre do curso, não consigo olhar pra alguém e chamá-lo de amigo.
Existe uma coisa dentro de mim que eu não sei o que é. Uma coisa que rechaça toda e qualquer tentativa de vínculo com alguma pessoa. Essa coisa diz “expulse-os”. Por mais que eu tente lutar contra isso, ela sempre ganha. Quanto mais uma pessoa tenta se aprofundar em mim e descobrir o que eu escondo por trás das paredes, mais irada essa coisa fica. Consequentemente, maior é sua fúria também. Foi o que aconteceu com minha melhor amiga. Ela chegou a extremos tão profundos que a coisa tinha atenção exclusivamente pra ela. Sua fúria era tão grande que até a mim assustava. Sinto por minha amiga. Minha única e melhor amiga. Matei-a e vivi pra contar a história. Descanse em paz.
Não tendo mais ninguém com quem descarregar sua fúria, a coisa passou a lutar contra mim. Seu desejo é tomar conta do meu corpo e ser independente de mim. Ela me ataca com lembranças, boas e ruins. Ela me arranca lágrimas toda noite antes de dormir, ira logo após acordar. Preguiça ao ver a luz do sol, medo ao ouvir o barulho das pessoas vivendo lá fora.
Corri pra minha caverna e me isolei de tudo e de todos. Fugi, mas levei a coisa comigo. E aqui, dentro da caverna, a coisa me ataca com outra arma: tédio. Os ponteiro do relógio se arrastam sob um escaldante dia ensolarado de vinte e dois graus. A luz do sol tem me causado arrepios.
Passei então a recorrer a remédios pra dormir. Não é bem um remédio pra dormir. Na verdade é um antipsicótico poderoso, mas que também serve de sossega-leão.
Os remédios me possibilitam dormir sempre que eu quiser, tamanho seu poder. Posso estar em pleno meio-dia, alegre e radiante. Dois comprimidos bastam para que eu caia no sono em menos de meia hora. Logo, tenho abusado deles cada vez mais. Antes usava somente pra dormir durante a noite. Mas passei a utilizá-los também em feriados e fins de semana, a fim de abreviar tais dias.
Passo os dias dormindo e acordo quando já é noite de novo. Como alguma coisa, faço os trabalhos da faculdade e volto a dormir, com a ajuda dos remédios.
Hoje por exemplo, dia primeiro de maio, uma terça-feira, dormi praticamente por quatro dias seguidos. Comecei a tomar no sábado, então tomei também no domingo, depois na segunda (emenda de feriado) e por fim na terça. Acordei há pouco mais de duas horas. Agora são oito e meia da noite.
Não sei se é culpa dos remédios, do excesso de sono ou da atual depressão em que me encontro. Talvez seja até pela combinação desses fatores. Mas ultimamente meus sonhos estão cada vez mais intensos e realistas. Incontáveis as vezes em que acordei abobalhado no meio do sono, devido a algum sonho muito forte, não sabendo se aquilo era sonho ou realidade. Outras vezes também experimentei algo como os sonhos invadindo a realidade. Eu sonhava com alguma coisa ou alguém e acordava. Quando abria os olhos, bem de frente pra minha cama, estava aquela coisa ou aquele alguém me observando, sem esboçar qualquer movimento, estático. Nessas horas eu fico com o cu na mão. O coração dispara, o medo congela meu corpo. Tudo o que eu consigo fazer é fechar os olhos e rezar para que eu durma ou para que a aparição suma.
Acordado as coisas também não são mais como costumavam ser. Às vezes, quando viro repentinamente, tenho a impressão de ver um vulto se movendo muito rápido. Fico parado no mesmo lugar, esperando que o vulto apareça de novo. Não tenho coragem de ir procurá-lo. Abrevio as coisas que estou fazendo e me tranco em meu quarto.
Às vezes também ouço barulhos estranhos. Ouço minha mãe me chamando quando ela sequer está em casa. Ouço meu irmão me xingando quando ele ainda está na escola. E várias vezes também ouvi os tossidos de meu pai. Ele não mora nesta casa há mais de quatro meses.
Suicídio. Eu sempre fui fissurado por esse assunto. Não vou entrar em muitos detalhes, mas meu grande sonho é morrer cometendo suicídio. Só que não tenho coragem. Acho muito doloroso e tal. Ou seja, é um esporte que admiro, mas não tenho aptidão para praticar. É quase como um sistema de defesa do meu corpo. Quando me imagino cometendo suicídio, perco a vontade e a coragem de cometê-lo.
Mas ultimamente até isso mudou. Cada vez mais sinto vontade de ceder à tentação. Em casa me imagino explodindo o botijão de gás ou me trancando no meu quarto para cortar meus pulsos. A caminho da faculdade me imaginado me atirando aos trilhos do metrô. Na própria faculdade, que é um prédio alto, me imagino caindo lá de cima.
Uma vez, no metrô, fiquei olhando para os trilhos logo à minha frente. Eu olhava fixamente para o trilho, e ficava imaginando a força com que o trem me atingiria, qual seria a posição mais eficaz, se eu devia receber o trem com a cabeça deitada sobre um dos trilhos ou de pé, de frente pra ele. Os sons à minha volta foram ficando estranhos, e eu sentia uma leve pressão nas minhas costas, me empurrando pra frente. Quando o trem passou com velocidade, eu acordei de supetão. Meu corpo estava arqueado pra frente, como se estivesse tentando enxergar algo logo abaixo dos meus pés. Desde esse incidente espero o trem chegar pra me aproximar da faixa de segurança.
Confusão mental ou loucura. Qualquer um destes termos me define atualmente. Não me importo mais com o que pode vir amanhã, se vou conseguir me formar ou não. Não me importo se estarei vivo para fazer aniversário na semana que vem. Não me importo se as pessoas passem a me chamar de louco, anormal ou qualquer outro adjetivo similar. Tudo o que me importa é o sono e o que me aguarda no próximo sonho. Na verdade, a única coisa que me interessa atualmente é “A Mãe”.
A Mãe. É difícil tentar definir o que seja Ela. Ainda não estou bem certo se Ela é fruto da minha imaginação perturbada ou se realmente existe. Mas A Mãe me causou medo e admiração o suficiente para que me refira a Ela sempre em maiúsculo e com respeito.
Meu primeiro encontro com A Mãe foi há cinco noites. Não lembro com o que sonhei, mas quando acordei essa palavra ecoava em minha mente com fúria. A Mãe, A Mãe, A Mãe. O que isso queria dizer? Num primeiro momento associei isso ao dia das mães, que é no próximo fim de semana. Ainda não sei o que comprar pra minha mãe, mas com certeza essa preocupação não chegou a tal ponto de invadir meus sonhos. Experimentei a palavra em minha boca. A Mãe. Senti um calafrio na espinha. Era uma palavra poderosa e venerável. Tive medo de pronunciá-la novamente.
Na noite seguinte, sonhei novamente com A Mãe. Não posso dizer exatamente o que aconteceu, mas eu senti A Mãe. Talvez Ela tenha falado comigo. Ou talvez tenha apenas me observado. Mas eu senti Sua presença. Quando acordei, outra vez a palavra martelava em minha cabeça. A Mãe. Era a segunda noite consecutiva com o mesmo sonho.
A partir desse dia foi quando comecei a tomar os remédios com mais frequência e dormir por quase quatro dias seguidos. Nesse período, lembro de ter sonhado diversas vezes com A Mãe. Não consigo criar nenhum quadro. Lembro apenas de pequenos borrões difusos, como que vistos por trás de uma cortina e ofuscados pela luz. Lembro de uma biblioteca muito grande, tão grande que era impossível precisar onde começava e onde terminava. Suas prateleiras eram tão altas que subiam por vários andares de forma irregular, como o tronco de uma árvore.
Lembro de sons de coisas rastejando, de grunhidos como o de porcos. Lembro de pessoas conversando em línguas que eu não conhecia.
A lembrança mais consistente que eu tenho é a de que eu estava em uma casa. Uma casa velha e mal iluminada. Havia pessoas em roupas escuras, marrom e preto, andando silenciosamente para cima e para baixo. Tudo muito silencioso. Poucos falavam, e os que falavam era em voz baixa. Podia ouvir alguns poucos carros passando pelas ruas. Andei por vários corredores escuros, iluminados por velas brancas penduradas às paredes. Depois de muito andar, finalmente encontrei a saída para a rua e me espantei com o que eu vi.
As ruas, lugares, construções, eram bem parecidas com as que existem no mundo real. Mas de alguma forma, eu sabia que não era esse mundo, mas uma cópia. Na realidade, eu estava mais propenso a acreditar que este nosso mundo era uma cópia suja e mal feita daquele outro.
O mundo era uma noite sem fim. A treva eterna. Não existia sol. Era um mundo banhado pela luz da lua e das estrelas. O céu era limpo e brilhante. Havia estrelas que iam do azul turquesa ao roxo. A iluminação dos postes na rua, por outro lado, eram alaranjadas (como as que vemos no centro de São Paulo).
Fazia muito frio. As pessoas usavam roupas pesadas, como casacos e sobretudos. Todos de cores escuras, como preto e marrom. Carros antigos dividiam espaço com carroças puxadas a cavalo. Tudo era muito organizado, muito limpo, sóbrio e silencioso. A atmosfera lembrava morte em todos os aspectos.
E em tudo eu sentia A Mãe. Ela estava em todos os lugares, em todas as pessoas. Estava nos cavalos, estava nos prédios, estava até mesmo nas estrelas do céu.
Este foi meu último sonho, do qual acordei há apenas algumas horas. Ainda me sinto confuso, não sei bem o que dizer ou o que pensar. Mas de uma coisa eu sei: A Mãe existe, ou pelo menos estou disposto a acreditar nisso. E A Mãe me quer. Ela veio até mim e quer alguma coisa.
Sinto medo, mas minha curiosidade é ainda maior. Mais do que qualquer coisa, quero saber o que é A Mãe e o que Ela quer de mim. De alguma forma, sinto que enquanto eu estiver preso a este corpo, a esta vida, eu nunca vou poder me encontrar com A Mãe. Estou disposto a trocar tudo isso Pela Mãe.
A única coisa que sinto é pena por minha mãe, a mãe da Terra, a que me pariu e me criou por vinte e um anos com tanto esforço e sofrimento. Vou tentar entrar em contato com A Mãe e pedir que ela intervenha por mim. Desejo que minhas duas mães entrem em acordo, e que uma conforte a outra. Desejo que A Mãe cuide de minha outra mãe e faça-a entender de que ela não perdeu seu filho, mas apenas que meu tempo com ela acabou, e agora é a vez d’A Mãe.
Talvez, no futuro, dependendo do que A Mãe tiver reservado para mim, eu possa fazer pela minha mãe carnal o mesmo que ela fez por mim. Nada me deixaria mais feliz.
Renan Flores,
Primeiro de maio de dois mil e doze.