Opus Sem Número

Opus Sem Número. O Carnaval dos Animais: Porco

Ou

Ode à Bulimia

(Renan Flores)

O fato a seguir me ocorreu há cerca de duas ou três semanas atrás, mas que por preguiça só tive coragem de escrever hoje.

De lá pra cá algumas coisas me ocorreram que acredito terem me mudado de alguma forma, bem na essência do meu eu. Já não me conheço mais, já não sei se as coisas que sinto são minhas mesmo ou apenas invenção da minha cabeça.

Tenho faltado muito às aulas da faculdade, tenho negligenciado meus trabalhos, mesmo sabendo que meu grupo depende muito de mim. Ou pelo menos aparenta isso. Mesmo a Internet e as redes sociais tenho deixado de lado. Televisão, filmes em DVD, música. Não tenho paciência para nada mais disso. Meus instrumentos musicais estão empoeirando e desafinando, assim como meu coração. Mas não pretendo limpá-los.

Sinto que atingi a última fase de minha vida. Apenas me deito e durmo esperando não ter de acordar outra vez. Mas acordo.

Não quero viver muito mais do que meus vinte ou vinte e um anos.

Era noite. Quarta ou quinta-feira, não me recordo bem. Eu havia acabado de chegar da faculdade. Corri para o computador, pois precisava adiantar alguns trabalhos urgente. Minha mãe havia saído pra trabalhar. Nesta semana a escala dela era durante a madrugada.

Nesse dia, eu não me sentia nem um pouco deprimido, nem tampouco eufórico. Sentia-me bem, deveras muito bem. Estava contente com a faculdade, contente com minha banda, contente comigo. Enfim, sentia-me leve e bem disposto.

Passei cerca de uma hora e meia fazendo os trabalhos. Sentia muita fome. Era mais de uma da manhã e minha última refeição fora às seis da tarde. Resolvi dar uma pausa para jantar, talvez até mesmo dar o dia por encerrado e terminar o resto dos trabalhos na manhã seguinte.

Depois que todo mundo come, minha mãe costuma guardar o que sobrou em vasilhas, tampar e guardar na geladeira. Abri a geladeira e tirei tudo o que tinha lá: arroz, feijão, abóbora, salada. E o mais importante: um pote com carne cozida, bem do jeitinho que eu gosto. Não havia sobrado muito que desse pra alimentar a família toda no dia seguinte, mas também não era uma quantia que uma pessoa comesse sozinha muito facilmente.

Na fome e principalmente na gula, resolvi que comeria a carne toda. E para evitar o trabalho de ter de limpar muitos talheres e pratos, resolvi misturar toda a comida na própria vasilha de carne. É aquilo que meu pai costumava chamar de “mexidão” quando eu ainda era pequeno: botar tudo numa panela, mexer e comer. Mexidão.

Eu tenho um costume peculiar que é o de colocar vinagre por cima da comida. Se não tiver vinagre, a comida não tem gosto pra mim. Em determinada época cheguei ao extremo de até beber vinagre puro. O resultado: aos vinte anos descobri que tinha úlcera gastroesofágica. Comecei um tratamento ao mesmo tempo em que fui abandonando o vício por vinagre. Infelizmente esse vício voltou muito forte há cerca de um mês. Estou destruindo meu esôfago de novo.

Terminado o mexidão, ia colocá-lo no micro-ondas, mas tropecei e derrubei tudo no chão.

Nessa hora, do nada, me deu um estalo poderoso. Eu olhei e vi aquele monte de comida jogada no chão, uma mistureba nojenta fedendo a vinagre. Isso de alguma forma ativou uma lembrança reprimida em meu cérebro.

Eu tinha mais ou menos 17 ou 18 anos. Pesava oitenta quilos. Há pouco mais de um ano eu pesava cento e seis quilos. Entrei numa dieta rigorosa. Comia muito pouco, fazia exercícios com muita intensidade (aliás, atualmente tenho problema de coluna por causa desses exercícios). Mas ainda assim ninguém acreditava que eu tivesse ido de cento e seis para oitenta em menos de um ano e meio.

O segredo. Eu esperava que minha mãe saísse e colocava o som no último volume. Enchia uma jarra com água. Separava um rolo de papel higiênico, um rodo, alguns panos de chão, um balde e produtos de limpeza. Leva isso tudo para o banheiro, onde eu começava uma espécie de ritual de purificação.

Tirava toda a roupa e ficava de frente para o espelho. Por mais que eu estivesse emagrecendo, não conseguia me enxergar assim. Eu sempre via um gordão nojento e feioso. Eu continuava a me encarar no espelho, em silêncio, até que meus olhos ficassem úmidos.

Então me virava para o vaso sanitário. Me ajoelhava de frente pra ele e iniciava algum tipo de meditação que me desse força e coragem para realizar o que vinha a seguir: enfiar o dedo na garganta e vomitar. Era doloroso. Pra ajudar eu usava a jarra com água. Mas ainda assim doía. Primeiro a contração dos órgãos internos quando recebiam a ordem direta do cérebro de que tudo o que havia no estômago deveria ser expulso do corpo. Em seguida os músculos da garganta, fazendo o trajeto inverso aos que eles estão acostumados. Depois um jato poderoso expelido pela boca, rico em ácido estomacal. A respiração era bloqueada. Os olhos pareciam que iam saltar para fora das órbitas. E uma terrível dor de cabeça, causada, talvez, pelo cheio acre dos ácidos gástricos. Terminado o ritual, vinha a limpeza. O vaso sanitário, o chão e muitas vezes até as paredes ficavam sujas de vômito, tamanha a intensidade com que eu vomitava. Eu deveria limpar tudo cuidadosamente para que não ficasse nenhum rastro do meu sacrilégio.

No auge da minha crise eu chegava a vomitar três ou até quatro vezes por semana. E quanto mais eu vomitava, mais eu sentia que precisava. Sentia-me cada vez mais gordo. Sem dúvida alguma que foi daí que veio minha úlcera precoce.

Parado ali, no chão da cozinha, observando a sujeira que eu havia feito, imediatamente essas lembranças me assaltaram. A comida toda misturada, uma verdadeira lambança. Sujeira pelo chão, pelos móveis, pelas paredes (sim, foi um senhor tropeço). E o pior de tudo: o cheiro acre de vinagre que me lembrava do cheiro do ácido gástrico.

Sentei numa cadeira enquanto a memória descarregava suas lembranças em meu coração. Eu queria que parasse, mas não parava. Tentava tirar elas da minha frente, como um monte de lama jogado na minha cara. Mas quanto mais eu lutava, mais elas vinham.

Desabei. Comecei a chorar. Não queria nunca mais me lembrar daqueles dias. Não queria me lembrar da dor, da vergonha. Queria enterrar essas lembranças no passado e nunca mais tirá-las de lá. Mas cá estavam elas, como fantasmas me assombrando.

Fiquei com medo que meu irmão acordasse e visse aquilo tudo, e que depois contasse à minha mãe. Com muita dificuldade iniciei o processo de limpeza. A sujeira era grande e fedia. Com muita dor e dificuldade limpei aquela porcariada. Usei uma dezena de produtos de limpeza pra tirar o cheiro.

Quase uma hora depois a cozinha estava limpa de novo. Mas meu coração continuava sujo e fedendo. Não existem produtos de limpeza para o coração.

Hoje, essas lembranças ainda continuam a me assombrar, mas num nível bem menor do que no dia narrado no parágrafo anterior.

Sabe o que é mais engraçado? Eu cheguei a pesar setenta e dois quilos. Foi aí que descobri a úlcera. Então comecei o tratamento. Também comecei a ficar mais folgado e preguiçoso. Comecei a engordar de novo. Hoje, aos vinte e um anos de idade, estou pesando o mesmo que havia pesado antes da dieta. É engraçado dizer que um gordão de cento e tantos quilos já praticou bulimia algum dia. A vida é assim mesmo, cheia de piadas. Eu sou uma.

Renan Flores,

Vinte e oito de abril de dois mil e doze.

Renan Gonçalves Flores
Enviado por Renan Gonçalves Flores em 01/05/2012
Reeditado em 01/05/2012
Código do texto: T3644279
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