Era uma vez uma Cavalgada...

Quando a esposa gritou “Vamos para a cavalgada, meninada!”, Ramon foi até a caixa de remédios no alto do guarda-roupa e pegou um comprimidinho tarja preta dos seus preferidos, que fazia efeito em menos de trinta minutos – tempo que, ele pensou, seria suficiente para deixar seu espírito num estado satisfatório de torpor antes do início do festival de horrores que o destino lhe reservava para aquele domingo: um desfile de equinos montados por homens, mulheres e crianças (em alguns casos por animais mesmo, de uma espécie ainda pouco estudada pela Zoologia) que, todos os anos, levava uma enorme multidão de fãs para a principal avenida da cidade.

Ao chegar à avenida, junto com a mulher e os filhos, Ramon levou um susto. É que bem na sua frente, parado ao lado de um poste, havia um serzinho humano do sexo feminino, que não devia ter mais que seis ou sete anos, vestido como um adulto – uma coisa grotesca, de dar medo: cabelo alisado com chapinha, maquiagem carregada, chapéu enorme, óculos escuros, botas de couro (ou algo parecido), shortinho curtinho enfiado no rego, camisa xadrez amarrada com um nó na barriga e, como principal acessório, um celular daqueles que mais parecem computadores portáteis.

A sorte de Ramon foi que o calmante começava já a fazer efeito, o que desviava sua atenção do espetáculo tosco de homens e mulheres se achando o máximo dos máximos em seus trajes de cowboys e amazonas para uma nuvem branca que se movimentava lentamente dentro da sua cabeça, aliviando tudo...

De repente, a esposa gritou: “Já está vindo!”. E realmente um cavalo todo cheio de pose passou galopando pela avenida, montado por um rapaz sem camisa que devia estar quase cagando nas calças de tanta força que fazia para realçar sua barriga tanquinho bem definida. E logo vieram mais três, e mais quatro, e o povo na calçada onde Ramon estava atravessou correndo para o outro lado, para ver melhor o desfile, levando suas latinhas de cerveja, seus celulares e o principal: seus sorrisos resignados e satisfeitos, típicos de um povo que realmente não tem nada melhor para fazer numa manhã ensolarada de domingo.

Aquilo deve ter durado de vinte a trinta minutos, mas para Ramon, mesmo dopado, foram horas intermináveis.

E chamar aquilo de desfile é um exagero. Estava mais para a chegada dos Vândalos em Roma. Ou dos Saxões na Grã-Bretanha. Uma bagunça generalizada regada a latinhas de cerveja, com cavalos sendo chicoteados e lançados uns sobre os outros por pura maldade e diversão, gritos, grunhidos, frases lançadas aos urros num dialeto ininteligível para Ramon que, mesmo mergulhado na paz branca do seu remédio tarja preta, estava ansioso para aquilo acabar o mais rápido possível. Por três vezes, ajudado pela completa desorganização do evento, ele tentou: “Acabou, meninada! Vamos embora”. Mas o filhinho, atento a tudo, por três vezes disse: “Não acabou não, papai. Olha lá, olha lá, vem mais”. E vinha mesmo.

E numa dessas vezes Ramon viu uma moça bonita, montada num cavalo preto brilhante, trazendo atravessada no peito uma faixa de Rainha da Cavalgada. A coitada parecia aterrorizada no meio da confusão, como uma princesa sequestrada por um bando de guerreiros bárbaros se afastando do castelo de seu pai com a certeza de que nunca mais veria a família. (E de repente um dos guerreiros gritou para alguém no meio do povo uma frase estranha, num dialeto difícil de traduzir, mas que logo Ramon, observando o efeito produzido, entendeu como “Me dá uma latinha aí”).

(Ah se esse povo bebesse menos e lesse mais...).

De repente, do nada, da mesma forma como havia começado, a coisa acabou.

Roma caiu.

“Graças a Deus”, pensou Ramon, fechando os olhos, feliz.

Era uma vez uma Cavalgada...

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 29/04/2012
Código do texto: T3640389
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.