Nossos dias de chuva


 
O barquinho de papel descia ladeira abaixo, pelos cantinhos das calçadas.  Alguns eram feitos com folhas de cadernos e outros  mais elaborados, pelos que tinham mais criatividade. Não sei exatamente qual era o sentimento que nos invadia quando colocávamos os barquinhos para descer a Rua de Cima, onde morávamos. Fora a diversão garantida, tenho certeza que lampejos de situações surgiam em nossas cabecinhas sonhadoras.



Eu imaginava o barquinho cheio de pessoas, com alimentos, roupas, famílias inteiras num imenso transatlântico, acenando para os amigos e indo conhecer outros mares. Ficava muito triste quando um ou outro barquinho virava. A água barrenta descia com força e uma das coisas que mais me fascinava era ver os pingos de chuva molhando cada um dos paralelepípedos da rua. Era como um quadro sendo pintado. Na minha mente sonhadora, eu pintava todos os quadros que queria e ainda mantenho esse comportamento, negando-me a mudar e virar sobrevivente esperta, como faz a grande maioria das pessoas.


Hoje compramos as mais belas sombrinhas; coloridas, lindas! Basta ter uma chuvinha que os ambulantes correm para as ruas da cidade. Conforme a intensidade da chuva, o preço vai variando. No final do dia, quando o vendedor já está cansado, podemos comprar aquela sombrinha vermelha de bolinhas brancas para a nossa coleção.



Fico pensando na grande dificuldade de ter guarda-chuvas. Os nossos quebravam-se com facilidade, pois eram os mais simples. Em nossa família tínhamos dois. Um para o papai e mamãe e outro para os filhos. As galochas não eram as de botas, porque eram mais caras. À medida que os pés cresciam as galochas iam rasgando nos lados e nas pontas. Era até engraçado!


Eu adorava uma capinha de chuva que ganhei e aquela sim, usei por muito tempo. Até hoje sinto a sua textura e sua cor. Uma vez mamãe pediu que eu fosse pedir pó de café à sua amiga e vizinha Iria, bordadeira que eu adorava. Levei uma canequinha vazia e voltei feliz demais, porque o fotógrafo da cidade me viu no meio da chuva, com a capinha, descalça e com a caneca na mão. Ele me retratou! Talvez aquela tenha sido a foto mais bonita de toda a minha existência. Pena que a chuva a levou, junto com tantas outras, numa das enchentes de nossa terra.



Voltando aos barquinhos – hoje incorporados às lembranças -  não havia maldade dentro de nós. Se sentimentos ruins apareciam, eram logo colocados para o lado do esquecimento, porque logo algo bom substituía plenamente as coisas ruins pelas quais passávamos. Sabíamos que nem tudo eram flores e havia preconceito, competição, inimizade, inveja...

Relembrando Nelson Rodrigues, um sábio, o sentimento de inferioridade que possuíamos talvez fosse o mesmo para nossos amiguinhos, fazendo uma comparação simples com a “grama da casa do nosso vizinho”. Nós é que não prestávamos atenção nas coisas que tínhamos e o que importava era tocar o barquinho de papel de qualquer modo.



Sabemos que do nosso lado mora alguém que um dia também deve ter feito barquinhos de papel, porque ouvimos um ruído de vez em quando. O rádio é ligado bem baixinho, para não incomodar. O nosso vizinho está cada vez mais distante e invisível e todos estão mais seletivos, medrosos, sozinhos.

Apesar de a grama estar verdinha e crescer bonita, cada um cuida do seu próprio jardim e não partilha uma folha sequer para construir barquinhos de papel para descer ladeira abaixo, num dia de chuva abençoada por nossas primaveras de criança.



Domingo de sol e calor, sem chuva.
Abril de 2012
Imagens Bing

Foto do Por do Sol - by Sunny

 
 

Sunny L (Sonia Landrith)
Enviado por Sunny L (Sonia Landrith) em 29/04/2012
Reeditado em 29/04/2012
Código do texto: T3639548